NÃO PRECISAM MAIS DE MIM - II >> Albir José Inácio da Silva

 

(Continuação de 4 de setembro de 2023)

 

Por um tempo pareceu que a euforia religiosa salvaria o império, que foi dividido para facilitar a administração. Mas não adiantou, Roma sucumbiu às invasões. O exército que tanto fez pela nossa campanha foi derrotado.

 

 E agora, como ficamos? Eu sou como os brasileiros – um povo que surgiria mais de mil anos depois -, não desisto nunca!

 

Verdade que não havia mais a proteção de Roma, mas tínhamos crescido tanto que já não precisávamos de proteção. Agora nós é que protegíamos, abençoávamos, coroávamos os reinos surgidos com a fragmentação do império.

  

Os novos soberanos logo perceberam que aquela fé, unida às armas, era perfeita para conquista e manutenção do poder. Os bárbaros foram cooptados pela confissão que amansava o povo e punia os rebeldes. Mais eficaz que o medo do suplício nas masmorras, era o pavor da danação eterna nas chamas do inferno.

 

Encontrei com facilidade alguns obreiros dedicados que ajudaram a sofisticar o controle e a repressão. A Santa Inquisição desenvolveu até limites inimagináveis os instrumentos de tortura. As fogueiras com os hereges iluminavam as praças como nos tempos dos romanos. A diferença é que naquela época o combustível eram os incendiários de hoje.

 

A tortura é um procedimento muito caro pra nós. Permite muitos avanços, delações e confissões que condenam inimigos e derrubam potestades. Mas quem realmente se delicia com ela são os sacerdotes do Santo Ofício.  Chegam a salivar diante do rosto retorcido pela dor e desespero do pecador quando as chamas lambem sua pele.

 

Eu gosto mais de resultados, de números. Não perco tempo com sentimentos ou sofrimentos humanos. Morram como quiserem, quero quantidade de almas e não qualidade de mortes. As cruzadas, por exemplo, foram mais produtivas: milhares de soldados trucidando milhares de aldeões e camponeses pagãos porque eram pagãos ou porque estavam no caminho das tropas.

 

Aqueles vendilhões de pássaros, cabritos e ovelhas do templo de Jerusalém eram apenas mascates se comparados com o mercado da Santa Sé. Agora vendiam-se indulgências, pedaços da cruz de Cristo, ramos da sarça ardente, tiras do vestido da virgem Maria. Comercializavam-se escravos e mulheres para o trabalho e para o prazer. Tudo era mercadoria, tudo era permitido para alguns e proibido para outros.

 

O Papa Alexandre Bórgia foi nosso melhor representante desse tempo: orgias, conspirações, assassinatos, incestos, expropriações. Hipocrisia, ganância, devassidão, ódio, todos os sentimentos e comportamentos que me são caros.

 

Tudo ia muito bem. Cruzadas, inquisição, simonia, nepotismo. Fome, puritanismo e repressão nos campos, vilas e sarjetas. Gula e luxúria nos palácios, mosteiros e catedrais. Conventos transformados em bordéis para os clérigos, com cemitérios clandestinos de anjinhos junto aos muros.

 

Mas essa paz não ia durar para sempre. No século XVI um padre intelectual (sempre os malditos intelectuais!) resolveu protestar contra essa harmonia político-econômico-religiosa. Em pouco tempo os protestantes já eram centenas, milhares, denunciando as alegrias da igreja.

 

Nova ameaça no front, mais uma vez eu tinha de arregaçar as mangas!

 

Sorte minha que, por essa época, aconteceu uma cizânia entre Henrique VIII, rei da Inglaterra, e o Papa Clemente VI. O Rei enjoou da esposa espanhola, Catarina de Aragão, que não era mais tão jovem nem conseguiu lhe dar um filho homem. Pediu ao Papa que autorizasse o divórcio, mas Sua Santidade negou.

 

Indignado, Sua Majestade rompeu os laços com a santa madre igreja, foi excomungado, aderiu à reforma protestante, fundou sua própria igreja e autorizou seu próprio divórcio.

 

Para encurtar a história, Henrique VIII se transformou em nosso grande aliado. Casou seis vezes, decapitou algumas esposas, alguns padres e muitos desafetos. Expropriou bens da igreja católica e dos católicos. Mostrou ao mundo que nada mudou após os protestos dos protestantes.

 

Mas a Europa estava ficando pequena para nossos empreendimentos. Fomos para as colônias salvar os bugres adoradores de deuses proibidos, entidades estranhas, lua, sol, rio e montanha.  Lá, com a força da espada e da pólvora, conseguimos trazê-los para o lado do bem.

 

E, como pagamento pela salvação, trouxemos milhões de salvos para trabalhar em nossas lavouras, minas e palácios. Ou seja, eu continuava no controle.


Primeira parte http://www.cronicadodia.com.br/2023/09/nao-precisam-mais-de-mim-i-albir-jose.html


(Continua em 2 de outubro de 2023)

Comentários

Soraya Jordão disse…
Estive em Belfast e lá, ainda hoje, existe e funciona o portão que separa os católicos dos protestantes. Muito embora, possam circular entre 7 e 19h, o terror e a tensão permanecem. Sua crônica me fez reviver a história e a viagem.
Jander Minesso disse…
Rapaz, só melhora. Tô doido pra saber onde essa história vai parar, Albir!
Nadia Coldebella disse…
Aff, parece que estou no meio da sarça ardente aguardando o final dessa história! E bem curiosa pra saber se o narrador é quem eu penso que é...
Zoraya Cesar disse…
òtimo demais, Dom Albir!!! Ansiosa pela 3a parte! Por favor, coloca o link dessa e da primeira parte no próximo, pq quero ler tudo de novo, na ordem!
Albir disse…
Obrigado, Soraya, Jander, Nádia e Zoraya, pelo carinho dos comentários.

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