CONSELHOS DE SAPATEIRO >> André Ferrer

Gostava de operar o Luceat, que era o modelo anterior ao Vacuum N2XØ, mas aquele tinha sido amplamente substituído. O serviço de limpeza pública, ainda em meados do ano, já contava com o novo equipamento.

– É mais leve – fez Tino Balaão ao colega de trabalho.

– Ganhou funções. É por isso.

De repente, uma grande ovação explodiu no interior do centro de eventos. A queima de fogos, então, começou. Fazia vinte e cinco anos que “as estradas da humanidade seguiam pavimentadas”, de acordo com o mais famoso lema da Memo INC., o conglomerado global que acompanhava cada um dos mais de dez bilhões de habitantes da Terra enquanto estes tomavam as suas decisões diárias baseadas num avançadíssimo algoritmo epigenético chamado Prior Consultant Epigenetic ou, simplesmente, EPiC.

Tal ferramenta, da qual se comemorava o jubileu de prata naquele dia, era uma verdadeira conquista da democracia para muitos. Outros, no entanto, ancorados num pragmatismo orwelliano, evitavam colocar apenas as vantagens sob os holofotes. Em todo caso, de um modo quase unânime, o EPiC tinha fama de equanimizador. Ele colocava os homens e as mulheres em contato com todas as experiências vivenciadas pelos seus antepassados. Dava-lhes chances iguais de conhecerem o que lhes tinha levado a encontrar o que tinham, de fato, encontrado na linha de largada, isto é, no nascimento. Enfim, ao lado da internet, o EPiC brilhava como um dos grandes avanços do Século XXI.

Numa jornada de seis horas, o intervalo deles durava quinze minutos, o que era rigidamente monitorado por outro algoritmo. A supervisão melhor localizada seria capaz de chegar com uma rapidez infalível caso qualquer operário extrapolasse as regras. Por isso, Tino tratou logo de morder metade do seu sanduíche de frango, que empurrou com a metade do conteúdo de uma garrafa de suco de laranja.

– O que foi? – disse.

A companhia de Tino Balaão chamava-se Uriel. Homem que mastigava bem de vagar, sem o capacete e encarava o seu interlocutor com um grande insulto nos olhos.

– “A Síndrome Do Filho Do Sapateiro” te pegou.

Uriel era do time que observava a vida sob a ótica mais pessimista.

– Livro idiota – volveu Tino. – A maioria dos netos de sapateiros já se foi. Quem dirá, os filhos de sapateiros. Ninguém consulta antepassados com essa profissão no EPiC.

– Se você lesse, comeria mais de vagar. Sempre cagando de medo da supervisão! Pois, no livro, há um capítulo sobre os últimos açougueiros de carne equina de Paris. O conhecimento, meu camarada, é libertador.

– Dois minutos – fez Balaão. – Acabou o intervalo.

Mas que criatura!, pensou ao se levantar. Uriel vai falar e me segurar aqui até que nós dois levemos uma advertência. Uriel e a sua obstinação por essa teoria sobre profissões extintas! Uma militância desarrazoada e sem futuro.

– Já vai? Cagalhão.

– Bom trabalho.

Uriel permaneceu tranquilo. Suas mordiscadas num infinito sanduíche de atum configuravam, na mente de Balaão, a maior das temeridades quando as pessoas já começavam a sair do centro de eventos. A festa chegara ao fim. A supervisão, no seu bólido ligeiro e superinformado, poderia surgir do nada. Apanhar, brotando da multidão, o tagarela e imprudente Uriel.

Municiado com as novas funções, o Vacuum N2XØ permitia um trabalho mais leve, o que ainda incomodava Tino Balaão depois de quatro meses da substituição do velho Luceat. Num dos seus ademãos na frente do prédio já quase vazio, encontrou o sorriso sarcástico de Uriel. Ileso e, certamente, sem aquele desconforto estomacal provocado pela ingestão apressada.

Quando o expediente terminava, Tino seguia logo atrás de quatro jovens. Um deles jogou uma lata de refrigerante no chão. Os demais, que olhavam sobre os ombros e riam fragorosamente, também contribuíram com aquele rastro deseducado e reprovável.

Tino Balaão percebeu a aproximação de Uriel, uma vez mais, na direção oposta. Quando passou pelos quatro jovens, ameaçou jogar neles o seu N2XØ e aquela brusca oscilação de trajetória foi suficiente para que a supervisão aparecesse zumbindo e registrasse uma advertência do Tipo Roxa.

– Compareça na data indicada prezado colaborador – fez a voz metalizada enquanto o bólido imprimia uma longa tira de papel térmico amarelo.

– Esses moleques abastados... – reclamou Uriel quando a supervisão mal-desaparecia no final da avenida.

– São adolescentes.

– Quando consultam o EPiC, de fato, são os que encontram “as estradas da humanidade pavimentadas”. Sabe por quê?

– Porque jamais escutam conselhos de sapateiro.

– Exatamente.

Uriel conferiu se o expediente já tinha terminado. Na verdade, ultrapassavam cinco minutos da marca. Então, ele acionou o recondutor do seu N2XØ, que encapsulou o equipamento e começou a levá-lo, de modo autônomo, até a central mais próxima.

Tino Balaão fez o mesmo e seguiu para a sua casa. O trem estava lotado e, como a maioria dos viajantes era constituída por jovens na faixa etária do seu filho – que também era a faixa etária dos quatro petulantes emporcalhadores da cidade –, Tino desejou encontrar o filho naquele trajeto. De preferência, queria vê-lo acompanhado. Feliz, principalmente, no meio de gente da sua idade.

Desde que a mãe do rapaz falecera, há pouco mais de dois anos, moravam num supercondomínio popular localizado fora da cidade. Embora tivesse aguentado a partida da mãe no período de luto, Bilo parecia mais infeliz agora. Uma garota, providencialmente, surgira na sua vida como um grande apoio e, justo na hora mais escura, auxiliara demais. Ultimamente, depois de toda aquela construção operada dentro de Bilo, a garota fazia o que as mulheres fazem sob o pretexto de um caminho exclusivo e inegociável, que sempre chamam de amizade: ressignificam, declinam, afastam-se. Bilo, nas últimas semanas, estava inconsolável.

Por isso, Tino pensava no filho quando desembarcou do trem. Havia lixo nas calçadas. Lixo no portão 29Q. Lixo na rampa do bloco em que Tino e o filho residiam. Então, sentado numa pilha de engradados velhos, Bilo observava, taciturno, as luzes da metrópole que o pai ajudava a fazer brilhar todas as noites. Tino chegou perto. As mãos nos ombros tensos do filho.

PxHere

– Pare com isso. Por que você não foi? As comemorações do jubileu estavam esplêndidas. Viu os fogos, daqui, pelo menos?

– Esplêndidas! Ora! Daquele seu aspirador de pó, eu duvido que tenha visto alguma coisa.

– Filho, não seja ingrato! Sua amargura não pode se tornar malcriação. Acha que é justo?

– Não. Desculpe.

– Filho, o amor é um coquetel químico. Não passa disso.

– Hum.

– Conversamos a respeito. Li para você aquele artigo. Lembra? Mostrei vídeos. Alegre-se por eu estar aqui. Nem tudo na sua vida, como este assunto entre pai e filho, poderá ser resolvido em consultas ao EPiC.

– O milagre do milênio.

– Si... Sim. Em todo caso, a ciência já destruíu, há tempos, a explicação do amor segundo a ascensão romântica da burguesia. Não ache, filho, que eu te levo a mal. Na sua idade, também sofri. E... Teria sofrido menos se alguém me apresentasse o amor em termos das suas bases fisiológicas. O conhecimento, como eu sempre digo, filho querido, é libertador.

Comentários

Jander Minesso disse…
Mas não é porque a gente lê o manual que dói menos, né?
Bela distopia, André. Brazil, Fahrenheit e Paranoia foram coisas que me vieram à mente enquanto lia.
Albir disse…
Muito bom, André!
A riqueza ficcional da distopia que se junta com a humanidade das frustrações.
Nadia Coldebella disse…
Vc é muito bom nisso André, criar um cenário assim, depressivo, distópico e muito possível.
Mas o amor (ou a paixão) por mais química e fisiológica que seja, ainda deixa um rastro de dor atrás de si que justifica certas músicas sertanejas (pra isso, o epic tem solução?)

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