DEPOIS >> Carla Dias


Comprou roupas novas, pela primeira vez na vida, engraxou os sapatos. Os fios dos cabelos foram acalmados em um ajeitamento oferecido por ela, que lhe beija as faces, em misto de respeito e facécia, porque sabe que ele aprecia permanecer nas beiradas dos significados. Não fosse a presença dela, teria saído sem ser percebido. Reconhece-se no espelho, cumprimenta-se e depois sai do quarto, o pé esquerdo mancando um tombo, o direito, arrastando todos os caminhos pelos quais se atreveu. Enquanto segue pelo longo corredor, encarando as diversas portas que não terá a oportunidade de abrir, pensa no tempo, que acha ser um bicho engraçado, de dentes longos e afiados, e braços gigantes, acolhedores de esquesitices importantes. Quando é cutucado, ele se agita sem ritmo, torna-se imprevisível, e cede o palco ao inesperado e às salas de emergência. Também limita o movimento, o que destempera as danças. Preparou-se como pôde, talvez não como o esperado, mas jamais desapontaria seu público oferecendo um comportamento divergente da sua verdade bagunçada, canhestra, às vezes, ingênua, a ponto de acreditar na sua capacidade pacificadora, ainda que saiba ser incômodo e colecione erros como se fossem acertos. Não recusará a taça de vinho, os quitutes e de cantar, voz rascante, as músicas preferidas. Despedidas são pedras no sapato do sapateador. Ao menos está permitido desafinar, maldizer o divino, para então chorar no seu ombro, reconhecendo o vazio que seria se ele não ocupasse as pessoas. Então, no silêncio pós-drinques, gargalhadas, e contação de histórias embaraçosas de anos atrás, se deitará no abraço dela, que ocupará o silêncio com relatos de memórias menos coerentes, porque é isso o que ela faz depois da terceira taça de vinho. Ele adora isso nela. Depois, sorrirá o último sorriso, temendo, ainda que tenha ensaiado, à exaustão, para não temer, o começar a se esquecer. 

Imagem © pizar almaulidina, por Pixabay

Comentários

Que texto sensível e repleto de imagens poéticas e poderosas. Adorei esta do pé “ arrastando todos os caminhos pelos quais se atreveu”!
Jander Minesso disse…
Você é tão boa de pintar significados com palavras que dá até inveja. E preciso admitir que tive que buscar “facécia” no dicionário. E veja que curioso: até meu corretor ortográfico conhecia a palavra, mas eu não. Ele tá de facécia comigo.
Zoraya Cesar disse…
"o pé esquerdo mancando um tombo, o direito, arrastando todos os caminhos pelos quais se atreveu." Só Carla Dias para fazer essas imagens absolutamente incríveis.
Acho q viajei um muito, mas essa é a última viagem dele, nao? O tempo todo me pareceu uma despedida dessa vida. Lindíssimo conto, seja qual for a leitura: ela é boa.
Albir disse…
Que beleza, Carla!
Absorvente.

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