SERES >> Soraya Jordão


Quando eu era pequena, tinha a mania de conversar com as coisas. Contava histórias, fazia elogios e promessas para todo tipo de objeto:  brinquedos, enfeites, talheres, escova de dente. Esses eram meus amigos imaginários. Eles nunca respondiam, mas isso não me impedia de demonstrar a importância de cada um na minha vida. Nem a comida escapava do meu papo. 

O último monólogo afetivo que tenho lembrança aconteceu na venda do carro da família, a querida Brasília amarela. Abalada com a iminente separação, exigi um momento de despedida com Margarida, aquela lindeza cor de gema. Concedido o último desejo, caprichei: fiz carinho no painel, beijei o banco, porta-luvas e volante, agradeci por todas as vezes que fomos à praia, ao parque. Por fim, jurei jamais esquecê-la.

Em meio àquela dor profunda, ouvi da minha mãe: “Não precisa sofrer por isso, as coisas não têm sentimentos.” Chocada, atribuí tamanho absurdo a sua habitual esquisitice.  Com o abrandar da inocência, aprendi a ter vergonha dessa tosca sensibilidade, desertando desse mundo fantasioso.

Acontece que o tempo é danado para fingir esquecido o que está apenas soterrado. E hoje, depois de passar algumas horas no corredor de um hospital público e observar o derramar das dores em macas frias, tubos de soro, seringas e sondas, voltei a pensar na real importância de cada ser. 

De volta a minha casa, abracei meu travesseiro, beijei minha cama, agarrei minha manta e agradeci, emocionada, a existência deles. 

Prefiro acreditar na alma das coisas a me anestesiar pela cegueira da rotina. 


Imagem © Piyapong Saydaung, por Pixabay

Comentários

Clara Braga disse…
Esse texto me pegou de jeito! Também gosto de acreditar na alma das coisas!
Anônimo disse…
Texto objetivo e sensível. Adorei. André Ferrer aqui.
Soraya Jordão disse…
É bom demais o carinho das palavras. Obrigada André e Clara.
Jander Minesso disse…
Não é o xintoísmo que diz que tudo tem uma alma? Tá resolvido, então. ;)
E tô com o André: você equlibrou muito bem objetividade e sensibilidade.
sergio geia disse…
Parece que a vida ficou mais bela hoje, e com boas perspectivas. Foi seu texto. Grato, Soraya.
Soraya Jordão disse…
Como é bom escrever e sentir a escrita tocando as pessoas. Obrigada, Sergio e Jander.
Ana Raja disse…
Você tem o dom de me emocionar! Belíssimo texto.❤️
Soraya Jordão disse…
Minha querida amiga, Ana, você me inspira com sua escrita de bordado.
Nadia Coldebella disse…
"O tempo é danado para fingir esquecido o que está apenas soterrado". É com essa frase profundíssima que começo minha manhã de sexta-feira. Hj vou olhar para o mundo ao meu redor e tentar sentir um pouquinho dos sentimentos das coisas.
Não tem nada de sensibilidade tosca nisso.

Gd bjo, querida!
Soraya Jordão disse…
Obrigada, querida Nadia. Saber que minhas palavras acendem sentimentos e emoções me faz feliz. Beijo.
Albir disse…
Que beleza, Soraya!
Encantador o seu texto.
Deu vontade cumprimentar algumas coisas esquecidas.
Soraya Jordão disse…
Que coisa linda saber disso. Obrigada, Albir.

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