PIA ARRUMADA >> JANDER MINESSO

 

Se existe na vida adulta alegria maior do que uma pia da cozinha arrumada, desconheço. O escorredor vazio, nenhuma louça por lavar, nenhum resto de comida no ralinho, tudo seco e brilhando: isso é felicidade. A pia arrumada é o norte na bússola de qualquer ser humano que deixou a casa dos pais. Ela é a certeza de que, não importa o caos do seu dia, algo de sólido existe.

Há quem discorde, mas essas pessoas estão erradas e posso provar. Imagine a cena: seu despertador toca às seis da manhã, anunciando um longo dia pela frente. Você desliga o alarme no primeiro bip, só para não ter que ouvir aquele barulhinho desgraçado. Levantar da cama é quase um milagre, mas você consegue. E parecendo um figurante do Walking Dead, rasteja até a cozinha para preparar seu café. Agora, atenção. Nesse momento, convido o leitor a imaginar dois cenários:

Cenário Um: ao chegar na pia, você dá de cara com a louça da noite passada. O vinagre da salada de ontem agride seu olfato; o prato ganhou uma textura nova, um craquelê de molho de tomate seco; e alguma coisa mal-intencionada está se mexendo dentro da frigideira. Assim que os olhos pousam em tão dantesca cena, nuvens pesadas cobrem sua mente. O cheiro do restinho da cerveja que fermentou no copo rasteja para dentro do nariz e dá uma leve embrulhada no estômago. Aí, você lembra que não deveria ter bebido tanto numa terça-feira, até porque hoje tinha alguma coisa importante para fazer, não tinha? Puta merda. Era a reunião de status na firma. E dessa vez, o relatório da equipe (que você nem começou) era sua responsabilidade. Puto da vida, o jeito é cavar um espaço naquela escultura de louça, procurando um cantinho para encostar sua xícara e fazer o café. Você escora uma panela com o ombro enquanto usa o anelar da mão esquerda para empurrar uma tigela um tiquinho a mais para lá. Ato contínuo, tenta equilibrar a xícara naquele espaço de um milímetro quadrado que conseguiu abrir na pia. Você sabe que não dá, mas tenta mesmo assim. Resultado: a xícara balança, balança… e se espatifa no chão. Seu dia horrível mal começou. E ainda tem louça para lavar.

Cenário Dois: você encontra a pia limpinha, vazia, uma tabula rasa esperando que alguém escreva nela a história de um dia glorioso. Em questão de segundos, o ritual sagrado de preparação do café da manhã já começou. E então, um raio de lembrança: putz, tem aquele relatório para a reunião de hoje que ainda não está pronto. Sem problema. Um gole no seu café com leite, uma mordida no seu pãozinho e seu cérebro já está funcionando a cem por cento da capacidade instalada. Antes de terminar de comer, você já estruturou o relatório na cabeça, criou mentalmente o roteiro da próxima novela das nove e ainda descobriu a cura de todas as doenças do mundo, inclusive as não catalogadas. És grande, forte, invencível. Quando dá por conta, a louça do café da manhã também já está lavada, o relatório está impresso e o Obama está te ligando para combinar aquele almoço com os grandes diplomatas do mundo. Você é muito foda.

Não tem o que discutir, meu povo: pia arrumada é sinônimo de paz. Os países com melhor IDH no mundo são aqueles onde as pessoas não dormem enquanto restar um prato sujo na cozinha. A Escala Internacional de Felicidade começa no zero e termina na pia arrumada. É claro que existem outras coisas que enchem nosso peito com uma maravilhosa sensação de plenitude: ver os filhos crescerem, brincar com o cachorro, viajar para o lugar que você sempre sonhou… Tudo isso tem sua importância. Mas nenhum desses momentos enche o peito de uma serenidade tão absoluta quanto uma pia nos trinques.

Quando seu espírito se abre para esta verdade, não existe mais volta. Um ciclo virtuoso se inicia, uma espiral ascendente que ninguém sabe onde pode terminar. Por isso, convido todos os amigos para tentarem. Aceitem o desafio da Pia Arrumada. Permitam-se o regozijo de guardar toda a louça que está pendurada no escorredor. Sintam o êxtase que preenche a alma no momento em que o rodinho corre sobre a pedra de mármore, mandando aquele excesso de água encanamento abaixo. Quando jogarem fora a sujeira que acumulou no ralo, joguem junto tudo que pesa no coração. Ao final do processo, contemplem com orgulho sua obra-prima. Não há satisfação maior do que essa. E só para lembrar, amor: hoje, a louça da janta é sua.

Imagem: Pixabay

Comentários

sergio geia disse…
Boa, Jander kkkkkkk. Mas é uma guerra sem fim pelamor rsrs
Cleber disse…
Kkkkkkkkkkkkk
Que sensacional!
Muitas coisas me passaram pela cabeça ao ler essa crônica…
1. A primeira delas é um quase sentimento de culpa (…);
2. Bem, depois disso, é lógico que vejo nessa gana pela pia limpa e organizada, muito de um certo amontoadão de átomos, ora já não exatamente amontoado;
3. Também enxergo muito de um outro amontoadão, esse evolutivamente mais metódico e rabugento (entendedores entenderão);
Um parênteses: Genética e doutrina fortes essas suas. Conheço bem.
4. Aí, penso se esse texto não chega a ser um conselho do meu arquétipo velho sábio para mim mesmo que, em poucos dias, estarei vivendo sozinho e distante;
5. Nesse sentido, parece até um texto psicografado pelo primeiro dos dois amontoadões relatados acima. Aliás, não há nada mais “a cara” dele, do que dar um conselho dessa forma;
6. Mas, o que mais me chama a atenção é que apesar de concordar com a “teoria estendida do complexo de pia limpa”, nem tudo que reluz é ouro (ou “pia brilhando”). Digo isso com um profundo conhecimento de causa, afinal, passei anos com a pia plenamente organizada, onde sequer havia escorredor pra apoiar a louça lavada. Era quase uma tara. Hoje, ou a pia está amontoada de coisas ou, na melhor das hipóteses, a louça ainda está no escorredor. Confesso que me incomoda, mas a vida é feita de escolhas…
Leticia disse…
Maravilhosooo !!!
Só quem atinge esse nível de felicidade pode entender, e ficar muito feliz , apenas com essa descrição ! Pia limpa é sim paz e felicidade kkkk agora é só esperar o Obama marcar o almoço ��������
Ana Raja disse…
Sensacional!
Pia limpa é total paz de espírito e felicidade plena.
Soraya Jordão disse…
Eu não sou uma pessoa de sorte. Uma da madruga foi a hora que consegui ler a sua crônica. Lá vou eu, lavar a bendita. obrigada, Jander! rs.
Anônimo disse…
Sabe todos aqueles coaches de saúde mental? Jogue todos fora. André Ferrer aqui.
whisner disse…
Aqui em casa ninguém dorme se a pia estiver bagunçada. Você está certíssimo!
Albir disse…
Que beleza, Jander!
Desconfiei de início, pensando em TOC, mas você me convenceu do contrário.
Disse que podia provar a tese da pia, e provou!
Nadia Coldebella disse…
Primeiro, meu caro, deixa eu te contar que a descrição da louça suja foi nojenta.
Agora, vc descreveu a essencial luta do bem e do mal, o yang e o yng e a eterna busca do equilíbrio (da louça e da vida).
Definitivamente, esse texto te eleva ao status de guru da vida prática!
Zoraya Cesar disse…
HAHAHAAHAHAH Jandeeeerrr, sensacional, cara, como vc consegue? Realmente, como disse nossa Countess Nadia, sua descrição dantesca da pia suja foi infernal.
E não poderia concordar mais com vc! Aqui, tb, a pia dorme limpinha, louça lavada e guardada, fogão limpo, tudo preparado para o dia seguinte. A única vez em q deixei de fazer isso me deu um desgostinho, sabe, tipo me senti fracassada e o dia foi se arrastando. Lavar a louça de noite e fazer a cama de manhã: fórmulas da paz. Acompanho o Ferrer, basta isso e acabemos com os manuais de autoajuda

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