NÃO PRECISAM MAIS DE MIM - I >> Albir José Inácio da Silva
Estou por aqui há muito tempo e
não tenho vida fácil. Acusam-me de tudo, mesmo do que não participei e às vezes
nem soube. Mas não posso reclamar porque tenho recebido muito apoio e bastante ajuda.
Alguns ajudantes se mostraram tão eficientes que já não precisam de mim. Isso
prova que tenho feito um bom trabalho.
Meu principal adversário, aqui
para os lados do ocidente, é um judeu pobre, sem uma pedra em que recostar a
cabeça, que tem me causado problemas nos últimos dois milênios. Nasceu num
estábulo quando a família fugia das autoridades, desobedecendo ordens do
soberano, ou seja, foi transgressor desde o nascimento.
Avisado dessa “aparição” pelo velho
testamento, tratei de ocupar militarmente a região com um império fiel, adestrado
nas artes da invasão, dominação e escravização, e que já conseguira submeter
quase todos os povos da época. Não tinha como escapar, o estorvo.
Mas escapou. E em sua curta vida,
atacou meus principais aliados: os fariseus, escribas e outras autoridades religiosas.
Chegou a agredir fisicamente os vendilhões do templo, que comercializavam artigos
de fé, e todos se sentiam no dever de comprar para suas oferendas e devoção.
Esta é uma atividade sagrada para nós até hoje, que sustenta palácios, carros e
aviões dos que merecem essa distinção.
Só havia uma coisa a fazer, e ele
foi crucificado. Segundo seus adeptos, ressuscitou. Ressuscitado ou não, divino
ou não, virou uma dor de cabeça para a nossa causa. De nada adiantaram as
crucificações ao longo das estradas, as decapitações e os incêndios, seus seguidores
se espalharam feito erva daninha pelos quatro cantos do mundo, com mensagens
idiotas de amor ao próximo, acolhimento, perdão, e outras fraquezas que
contaminaram a humanidade.
Mas a paz ainda reinava, a pax
romana, imposta pela espada, pelos tributos cobrados dos povos subjugados,
pelos escravos arrastados para as minas e para as arenas, a divertir e
enriquecer os patrícios. Tudo caminhava em harmonia. Havia rebeldes, seguidores
ainda daquele judeu crucificado, mas eles se esgueiravam pelas cavernas e
catacumbas, caçados como animais.
O império aliado começou a dar
sinais de decadência. As disputas internas pelo poder e o colapso do sistema
escravista somaram-se às rebeliões de colônias antes obedientes. Bárbaros rebeldes
pareciam brotar do chão e das águas do mediterrâneo. Bárbaros que, se por um
lado provocavam uma carnificina sempre bem-vinda, por outro, ameaçavam o
império que tanto fez pela nossa causa.
Constantino era o imperador ainda
todo-poderoso, mas com dificuldades para governar um território tão grande e
províncias insurretas. Soprei no seu ouvido a solução para os nossos problemas.
Aquela religião escondida nas
catacumbas e nas montanhas crescia e seus fiéis traziam uma devoção e uma
unidade de propósitos que não se via no politeísmo romano ou nas seitas bárbaras.
Roma tinha as armas e se tivesse também a fé, seria novamente inabalável.
Estatizada, institucionalizada, a
religião saiu das sombras, não era mais massacrada, era obrigatória. Realizaram-se
concílios que geraram bulas, decretos, regras e proibições. Já não falava de amor, mas de autoridade, obediência,
hierarquia, organização. Já não acolhia, ensinava, protegia. Agora ditava
regras, ameaçava, amaldiçoava e excomungava. O neoplatonismo era perfeito com
seu desprezo pelo corpo e culto ao espírito. Maltratava-se a carne para salvar
a alma.
Ou seja, estava indo tudo muito
bem. Ave César! Mais disciplina e menos amor. Nada de passar a mão na cabeça de
prostitutas e perdoar ladrões. O pentateuco foi resgatado como regra de fé e prática.
Por um tempo pareceu que a
euforia religiosa salvaria o império, que foi dividido para facilitar a
administração. Mas não adiantou, Roma sucumbiu às invasões. O exército que
tanto fez pela nossa campanha foi derrotado.
E agora, como ficamos? Eu sou
como os brasileiros – um povo que surgiria mais de mil anos depois -, não
desisto nunca!
(Continua em 18 de setembro de
2023)
Comentários
Gde abç!!