HÁ PASSADO >> Ana Raja


Pela feira de antiguidades, caminhava prestando atenção em cada barraca instalada na praça lotada de pessoas comprando ou apenas olhando os oferecidos, feito eu.

Foi minha segunda visita à feira de San Telmo, em Buenos Aires, um ponto de encontro de turistas. O passeio começou antes de chegarmos à praça, um trajeto de rua estreita, onde artesanatos de produção local estão expostos: bijuterias, roupas, imãs de geladeira, camisetas estampadas com o rosto da Mafalda e muitas outras coisas.

Para mim, o auge é a praça. São tantos objetos antigos e usados, todos à venda em um clima diferente naquele local. Sempre imagino como as peças foram parar ali. 

Um jogo incompleto, com apenas cinco taças de vinho. O vendedor informou à cliente sobre o desconto; é por faltar uma peça, explicou. Como ficamos quando nos falta uma peça? A senhora fechou o negócio e levou consigo a embalagem feita com todo cuidado. Observando-a indo embora, imaginei quem ela estaria levando para sua casa. Quais bocas ficaram marcadas nas bordas daquele cristal. Agora, era a vez de os lábios da senhora tocarem os lábios de um passado desconhecido. 

Como a sexta taça se perdeu? Alguém a atirou na parede; quem do casal esbarrou o braço na mesa de cabeceira enquanto se abraçava? Ela escorregou de mãos ensaboadas depois do jantar?

Cismada com essas compras, prefiro apreciar. Levar tais objetos para casa é como adotar a energia das pessoas que um dia os possuíram. Essa mania de criar histórias para cada um deles me chama a atenção, me deixa assombrada. Sempre há um resquício neles — os protagonistas — de momentos experimentados pelas pessoas, os coadjuvantes da existência das peças expostas e disponíveis a qualquer um.

Ao passar em frente à barraca de venda de discos de vinil, a vitrola cantava; a música me fez parar. Perguntei ao vendedor sobre a dona da voz; me passou a capa do Long Play. Libertad Lamarque, uma jovem e bela mulher, estampava a capa do LP. Lamarque foi uma cantora de sucesso inaugurado em 1926. “Fumando espero” é um tango dengoso, e diz, mais ou menos assim: “fumar é um prazer genial e sensual/fumando eu espero o homem que desejo”. O vendedor apontou a cadeira ao lado da banca, sentei-me. Permaneci ali até a música terminar. Estendeu em minha direção uma caixa de lenços de papel, da qual puxo um para enxugar as lágrimas que dançavam nos meus olhos. 

Frequentar lugares onde se expõe o passado enigmático de outros costuma mexer comigo. Há quem perceba minha alma viajando para muitos lugares; em todos, encontro um pedaço de mim.

Confesso, naquele dia, fui traída pela minha cisma de não comprar o usado. Me deparei com ele exposto em um tecido de veludo vermelho, junto com outras peças de prata; meu olhar se fixou na sua existência. A vendedora se aproximou e disse ser a peça mais bonita entre todas as oferecidas, então, o colocou em minhas mãos, enquanto compartilhava alguns detalhes sobre ele. Não consegui prestar atenção às palavras dela, apenas na data de nascimento dele: 1910.

Nem me atrevi a recusá-lo. Eu o desejei e o trouxe comigo.

Emocionada, comecei a divagar sobre possíveis momentos vivenciados pelas pessoas ao usarem o crucifixo. Acredito ele ter enfeitado o colo delicado de uma mulher. Ela escutou a música na voz de Lamarque? Tinha fé em seu amor ou rezava por um? Seus passos foram audaciosos assim como a dança instigante do seu corpo? Ela foi livre para pensar e amar o amor sem prisões? Sim, uma mulher a carregar um crucifixo no peito aberto para o mundo, é capaz de experimentar todas as emoções oferecidas pela vida.

Quantas mulheres eu fui em honra de cada uma que carregou o crucifixo de prata? Darei continuidade à história. Hoje ele volta a brilhar no peito de uma mulher misturada com muitas das que se foram.

Imagem © Silvano Rodrigues

anaraja.com.br

Comentários

Jander Minesso disse…
Minhas visitas à feirinha de antiguidades do Bixiga nunca mais serão as mesmas. Não é San Telmo, mas as histórias também estão ali. Obrigado pelo texto de hoje, Ana. Muito bonito na sua delicadeza.
Soraya Jordão disse…
Delicado, potente, instigante, inteligente feito você. Viajei contigo pela feira e pela história. Lindo!
Elaine da Mata disse…
Que maravilha de crônica! Com certeza você conseguiu me levar com você nesse misturar de momentos. Amei Ana!
Albir disse…
Muito bom, Ana!
Essas antiguidades são uma viagem que vivenciamos, mesmo sem confirmar as histórias que fantasiamos.
Nadia Coldebella disse…
Muito bom esse texto!

Muito legal pensar na história atrás de cada objeto. Fantasmas...

Fiquei pensando na peça que falta: talvez para o novo dono esteja tudo completo.

E é assim, tem aquelas preciosidades que nos capturam. Dessas a gente não foge. Msm com fantasmas.
Zoraya Cesar disse…
Ana, que texto lindo! Eu tb tenho cisma em comprar coisas usadas, acho q sempre tem a energia do último usuário, e elas sempre me passam uma certa tristeza.
Masssss, tendo dito isso, acho q vc foi certíssima e felicíssima em comprar o crucifixo. Me lembrei do ato de uma passagem de O senhor dos anéis, em que Tom Bombadill disse que sua amada Goldberry usava um broche que pertencera a uma rainha, e o usava para homenageá-la.
'Here is a pretty toy for Tom and for his lady! Fair was she who long ago wore this on her shoulder. Goldberry shall wear it now, and we will not forget her!'

Desculpe a nerdice, mas seu texto me despertou tanta coisa boa! Ah, estou ouvido Libertad Lamarque agora.

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