RESGATE DO PASSADO – 3a e última parte – uma aventura do Detetive sem Nome >> Zoraya Cesar




Quando a viúva de Victor, meu amigo e mentor, me contratou para protegê-la do irmão dele, pensei que seria um trabalho simples. Simples e prazeroso, confesso. Mas quando o tal cunhado disse que suspeitava ter sido Victor vítima de assassinato, comprovei, mais uma vez, que nada na vida é simples. Às vezes, nem tão prazeroso
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Resolvi que não trabalharia em favor deles, mas de Victor. Receberia, no entanto, o dinheiro de ambos.

Pois dinheiro paga minha vasta cadeia de informantes. Um carro à prova de balas. Roupas próprias para impressionar os clientes. E armas de boa qualidade. Victor me ensinara isso. Sou bom aluno.

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Fui visitar o médico que assistiu Victor em sua doença e morte. 

Era um sujeitinho franzino, de jaleco amarfanhado, muito grande para seu corpo esmirrado. O nariz adunco, a careca oleosa e os óculos de aros grossos lhe davam um ar de cientista louco. Os lábios e os olhos diziam que era um sensualista pervertido e enfatuado. Mas não me deixo levar pela primeira impressão. Ao contrário do que dizem, nossos instintos podem mentir descaradamente. 

Dr. Bribón contou que, meses após o casamento, Victor apresentou sinais de fadiga (sexo com Nahesa podia ser exaustivo, eu sei...e Victor já não era criança). Os exames revelaram profunda anemia, para a qual receitou vitaminas e repouso (casado com aquela fogosa deve ter sido difícil). Que  era médico particular de confiança absoluta de D. Nahesa. Victor morreu porque chegara sua hora, como chegará a de todos nós, disse, compungido, fungando a insistente coriza que teimava em escorrer de seu nariz.

Disse há pouco que nossos instintos mentiam. Os meus, quase nunca. 

Os olhos do bom doutor brilharam lubricamente e um sorriso amarelo de tabaco surgiu e desapareceu como fumaça ao falar de Nahesa. Nesse momento, não sei por que, tive plena certeza que aquele sátiro horrendo matara Victor. 

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Detetives sempre têm de conhecer as pessoas certas nos lugares certos. Um amigo legista – que cobrava caro a amizade - me contou que o cadáver de Victor chegara com atestado de morte por ataque cardíaco, assinado por médico particular. A viúva não autorizara a autópsia e o legista responsável nada vira de estranho, a não ser algumas erupções cutâneas esparsas – dermatites bastante comuns, provocadas, provavelmente, por algum produto de higiene corporal.

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Levei minhas suspeitas a Nahesa: Theo teria subornado Bribón para envenenar Victor a fim de, posteriormente, acusá-la pela morte ou, até, dar-lhe o mesmo destino. 

Sua reação foi dramática. Chorou copiosamente e agarrou-se a mim sofregamente, implorando minha ajuda, afirmando que Theo armara tudo sozinho, Dr. Bribón seria incapaz de tal perfídia. Seu perfume era inebriante; sua pele, uma camurça quente; seus lábios, uma tentação do inferno. Sou pecador confesso. Sucumbi. 

Quando terminamos, fui ao banheiro. Ela me deu um sabonete novo. Disse ser o preferido de Victor, e que eu poderia levar comigo. Ao sair, encontrei-a ainda deitada, nua e exausta, a penumbra fazendo seu corpo parecer um sonho. Seus gemidos me acompanharam até chegar em casa.

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Fui ao escritório de Theo, aceitei o bourbon (não dispenso boa bebida). Falei que suspeitava que ele e Nahesa subornaram o médico para matar Victor. Theo fez alguns segundos de silêncio, pesados como culpa, e teve uma reação das mais inusitadas. Riu. 

Como disse, no meu ramo aprendemos a conhecer as pessoas. Theo não era homem de brincadeiras. Eu joguei alto. Temi pela vida de Nahesa.

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Talvez fosse melhor temer pela minha. Vomitei a alma, mal conseguia respirar, meus músculos pareciam sorvete derretido.  Meu coração começou a entrar em arritmia. Tive de chamar um médico, que, obviamente, não foi o Dr. Bribón. 

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Dois dias depois, acordei suando frio e dando graças por acordar. Pois eu subestimei o adversário. 

Estava na hora de terminar aquilo antes que alguém mais morresse e esse alguém fosse eu. 

Liguei para meus clientes e marquei um encontro no consultório de Bribón. 


Peguei minha Walther PPK, perfeita para esconder na roupa e mortífera quando bem manuseada. Eu era bom com armas. 

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Dr. Bribón saltitava como se estivesse sobre chapa quente. Theo, sisudo, o corpo ereto, em tensa expectativa. Percebi que viera desarmado, mas não desacompanhado - ao fundo do corredor, dois sujeitos fortes como estivadores aguardavam, discretos. Nahesa usava um vestido preto, os seios quase pulando do decote, as mãos nos bolsos, de um jeito que conheço bem. Era a única aparentemente calma, embora seus olhos estivessem um pouco maiores que o normal. 

Comecei falando do quanto devia à longa amizade com Victor, sem que nunca tivesse oportunidade de retribuir. Até agora.

Porque iria vingar seu assassinato covarde. Pedi-lhes que prestassem atenção na triste história de um homem, traído pela esposa e por um médico estúpido o suficiente para crer que uma beldade daquelas  entregara seu estupendo corpo a suas luxúrias por amor!  Acusei Bribón de falsificar os exames e envenenar Victor lentamente, para que Nahesa tudo herdasse e pudessem ficar juntos. Acusei-os de tentar me matar, depois que passei a desconfiar de Bribón, com o mesmo veneno que matou Victor. 

- C...c...como descobriu? Você não pode provar nada – tartamudeou o velho Bribón, sua careca luzidia de suor, o nariz escorrendo. Senti nojo de ter transado com Nahesa.

- O sabonete que Nahesa me deu ‘de presente’ estava contaminado com cromercurial em excesso. Uma dose para matar de vez. Teria morrido de ataque cardíaco e ninguém desconfiaria - Theo fez cara de intrigado. Expliquei:

- Cromercurial é veneno feito a partir do cromo e do mercúrio, absorvido pela pele. Seu efeito é lento e desagradável. Somente um farmacêutico experiente como o bom doutor aqui poderia consegui-lo. Minha sorte é ser desconfiado. Não usei. Mas tocar foi o suficiente para sentir seus efeitos. E o médico que me atendeu mandou para análise, por isso descobri.  

Bribón chorava, patético e desprezível, pedindo misericórdia. Sabia que seu destino estava nas mãos de três pessoas impiedosas.

Nahesa começou a mexer a mão dentro do bolso, mas fui mais rápido. Saquei minha Walther PPK.

- Ninguém vai morrer aqui hoje, Nahesa. Jogue a arma para cá. - Ela jogou. A danadinha levara uma Sig Sauer própria para mulheres, mas tão letal quanto qualquer outra. Apostei comigo mesmo que Victor lhe dera. Pobre Victor!

- Você não pode fazer nada contra mim, querido. Está atado ao seu contrato. Victor me explicou como vocês trabalham.

- Por isso vou te dar uma chance. Corre. Theo, diga a seus capangas para deixá-la passar.

Uma Walther PPK apontada para o peito é bastante persuasiva. Ele obedeceu. 

- Obrigada, querido. Fico feliz que não tenha morrido. E acho que não teria coragem de atirar em você. - Eu também não achava. Tinha certeza que ela pouco se importava se eu estivesse vivo ou morto e, se pudesse, teria atirado em mim sem remorso.

Nahesa saiu, deixando seu perfume no ar. Daquele dia em diante, o cheiro de sândalo, para mim, sempre recenderia a morte. 

- Theo, você é um hipócrita. Transou com ela. Brigou com Victor porque a queria para si. E ficou puto porque ela o rejeitou depois da morte dele, não é? Só por isso me contratou. Vocês se merecem. Se ela não ficará com a herança, você também não. Quero que o dinheiro de Victor seja entregue ao asilo da ordem à qual ele e eu pertencemos. Ou entrego meu relatório à polícia. Será ruim para seus negócios.

Ele sorriu.

- Assim será feito, e sou homem de palavra. Mas eles mataram meu irmão. Você sabe que vou me vingar, não sabe?

Dei de ombros. O que aconteceria àquele trio não era mais da minha conta. 

Cumpri o contrato com Nahesa, deixando-a escapar; e com Theo, desvendando a morte do irmão. E vinguei a morte injusta de um amigo, dever sagrado que não está nos livros, mas no coração dos irmãos de armas. Theo ficara sem a herança, sem o irmão e sem a mulher que cobiçara. Nahesa encontraria seu destino fatal. O doutorzinho provavelmente morreria num ‘acidente’.
 
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Organizei um enterro simbólico para Victor, com nossos companheiros. Agora sim, sua alma descansaria em paz. Meu mentor, mesmo depois de morto, ainda me dera uma lição: não deixe que seus instintos envelheçam como você. 

Não pensava mais em Nahesa, Theo ou Dr. Bribón. O cemitério era num descampado; o vento soprava, levantando as folhas, sacudindo os casacos, assobiando entre as tumbas. O dia estava frio. Mas não mais frio que meu coração. 

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Noite noir - Oportunidade. Aproveite-a ou afogue-se. Raymond nunca fora assassino a sangue-frio, nunca matara pelas costas

Sorte no jogo, nem tanto no amor - 1a parte- quando estar apaixonado pela mulher errada pode levá-lo ao sono eterno

Sorte no jogo, nem tanto no amor - 2a parte - mas o que é melhor, afinal? Ter sorte no jogo ou no amor?

Resgate do passado - 1a parte - quando a viúva de seu amigo e mentor procura ajuda, como negar? O problema estava em evitar cair sob seus encantos. 


Resgate do passado - 2a parte - você até pode ouvir o canto da sereia. Mas siga o exemplo do solerte Ulisses e se amarre no mastro. Ou a morte por afogamento é certa. 


Walther PPK
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Attribution: ThePierreR, CC BY-SA 3.0 <https://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0>, via Wikimedia Commons

Comentários

branco disse…
Um conto deste nível solidariedade em suas últimas linhas uma reflexão tão dura é bela. sempre conseguindo se superar.
Marcio disse…
POLÍCIA INGLESA INVESTIGA FRAUDE EM INUSITADO ESQUEMA DE APOSTAS SOBRE TEXTOS LITERÁRIOS

Por France Presse – 23/07/2021 – atualizado às 09h40

Um engenhoso estratagema envolvendo casas de apostas londrinas foi descoberto nesta sexta-feira pela Scotland Yard. Investigadores estimam que o golpe pode alcançar dezenas de milhões de libras esterlinas, a partir da manipulação dos finais de textos literários publicados em capítulos na internet, a atrair a atenção e os palpites dos leitores.

As autoridades inglesas já solicitaram a cooperação de outras instituições reconhecidamente eficientes no combate ao crime, tais como a CIA e o FBI norte-americanos, a KGB russa, o Mossad israelense e a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, para que auxiliem nas apurações.

Segundo divulgado, as casas de apostas londrinas estariam praticamente devolvendo cada libra apostada, para palpites que indicavam um desfecho para um texto da autora brasileira Zoraya Cesar, em que os personagens Victor e Nahesa terminariam a narrativa casados, felizes e com filhos trigêmeos. Mas, contrariando todas as expectativas, Zoraya publicou um final inusitado, criando um personagem ainda desconhecido (um médico de aparência repugnante), que alterou completamente o rumo da história.

Indícios apontam que, na tarde de ontem, um apostador solitário, utilizando uma conexão com a internet que teria partido do servidor da Justiça Federal do Rio de Janeiro, teria efetuado uma aposta de 237 libras esterlinas nesse surpreendente final, o que lhe valeu um prêmio de mais de quatro milhões de libras esterlinas.

Familiares da autora narraram que Zoraya teria saído de casa por volta de 06h11 da manhã, aparentando nervosismo, carregando um casco de Pepsi sob a axila, dizendo que iria à padaria comprar Coca-Cola.

Seu editor comunicou que a autora teria telefonado para ele às 08h22, contando que estaria viajando para Trinidad Tobago, em férias. No mesmo horário, câmeras de segurança da Estação das Barcas da Praça XV registraram imagens de Zoraya, enquanto embarcava para a Ilha de Paquetá, mas nenhum registro de sua imagem foi encontrado na estação de destino.

Érica disse…
Adorei a reviravolta do final. Mas acho que a Ganesha cheia de braços merecia um final menos benevolente... A tá, era Nahesa. Confundi.hehehe
Detalhe: os comentários do Márcio deveriam ser publicados como partes integrantes das suas crônicas, Zoraya. Ri muito kkk
Ah, Zô, vc é brilhante é agora, Até eu estou sentindo perfume da sândalo...
Anônimo disse…
Isso está ficando interessante com o Marcio colocando um "comentário policial misterioso" dentro da crônica! Estou pensando em fazer a "parte erótica" substituindo o "sucumbiu", entre a personagens Nahesa e o detetive, com tudo que tem direito! Hahaha...

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