A CASA DO VIZINHO >> Sergio Geia

 

Está sempre em serviços a casa do vizinho. De vez em quando espio, noto habilidades de artista. 
 
Singrando de obra em obra, como se fosse uma autoridade, ele toca o seu barco com destreza por telhados, massas e argamassas, por tintas, árvores e enxadas, por móveis, furadeiras e martelos, muito embora, também noto, demore um pouco pra terminar algum. 
 
Às vezes me dá inveja. No máximo minhas habilidades se limitam a mexer em papéis, a escrever coisas, às vezes com certa inspiração, às vezes nem isso. Das habilidades de meu vizinho passo longe, quando muito troco uma lâmpada, ou uma tosca resistência de chuveiro. 
 
Mas vejamos hoje, um esplêndido sábado de sol, como andam as coisas por lá. 
 
Vejo o telhado reformado pela metade. Uma mangueira frondosa parcialmente podada. Alguns móveis restaurados, mas que esperam finalização. Um quintal de cimento com uma faixa de terra aguardando talvez uma horta ou o próprio cimento. Fissuras rasgadas no chão que decerto esperam canos ou fechamentos, um rancho iniciado, mas que estacionou em colunas e ripas. 
 
De jeito nenhum quero tecer críticas ao parcelamento de seu trabalho. Primeiro, porque nada tenho a ver com isso. Segundo, porque até acho uma tática muito interessante, que aplico, diga-se, em boa parte de minha vida, especialmente em contas. Também acho estupenda a vista que tenho aqui de cima e o canteiro de obras em que sua casa se transformou. 
 
Mas adiante, amigo, sigamos, porque a crônica é curta, e o seu tempo certamente também o é. 
 
Não há como ignorar certas questões muito relevantes, especialmente em habitações contíguas. Grandes obras não se fazem ao silêncio. Pois descobri que as pequenas também não. Mesmo o simples restauro de uma cômoda de madeira exige o trabalho de martelos, furadeiras, serrotes, e uma sucessão de sons que não são lá muito agradáveis. Assim, a musicalidade que advém de enxadadas, britadeiras, marteladas e furadeiras, especialmente aos fins de semana, é coisa a que meus ouvidos ainda não conseguiram se acostumar. 
 
Veja outro dia o que aconteceu. 
 
Era um sábado como hoje, eu planejava uma cerveja em minha varanda à espera do almoço, mas o barulho de uma britadeira espancando o chão foi tamanho que me roubou a paz, a cerveja e até o ar fino que entrava pela sacada. 
 
Infelizmente nada posso fazer. São os ossos da moradia coletiva, que temos de roer, em nome do bom convívio social. No máximo desabafar em forma de crônica; creia, já me traz um bom alívio. 
 
Agora, dez pras onze, no momento em que lhe conto essa pequena chateação cotidiana, já ouço movimentos, embora tímidos. 
 
Mas hoje, desde as primeiras horas, está decidido: vou tomar minha cerveja. Que o vizinho, tão laborioso e esforçado, não me furte o desejo de tomar a gelada namorando a Mantiqueira, bela com os desenhos do sol tomando as suas montanhas, o revoo de garças, maritacas e bem-te-vis que sempre vejo daqui — essas belezas bobas de que não damos conta —, enquanto o meu almoço não vem. 
 
 
P.S.: Como a publicação sai na semana seguinte ao escrito, hoje posso lhe satisfazer a curiosidade, se é que ela existiu, e contar o desfecho do último sábado. Exatamente ao meio-dia, depois de tímidos movimentos sem muita repercussão, eu vi o obreiro acendendo a churrasqueira. Não houve barulho e pude tomar minha gelada alegremente. Se bem que o aroma da carne estalando na churrasqueira também chegou à minha varanda, e aí você pode imaginar a repercussão... 
 
Ilustração: Pixabay

Comentários

Zoraya Cesar disse…
"São os ossos da moradia coletiva, que temos de roer, em nome do bom convívio social. " HHAHAHAHA, bom demais, Sergio!
Albir disse…
A pandemia alterou o ritmo, a rotina e o desempenho de muita gente. Eu mesmo ando cometendo parcelamentos de coisas que antes fazia questão de concluir.
sergio geia disse…
Adoro parcelar, Albir, até nas mínimas coisas kkkkk. Valeu Zô!

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