HOSPITAL DE OLHOS >>>Nádia Coldebella
Ana remexeu-se na cadeira. A filha, autista, cansava rápido. Esgotava-se, na verdade, e quando isso acontecia, as coisas ficavam bem difíceis. Porém hoje ela estava bem. Haviam passado numa grande papelaria e a criança ficara quase uma hora entretida com canetas, cadernos e bolsas. Por causa do seu interesse descomunal por artigos de papelaria, Ana havia conseguido negociar com ela sua adesão aos exames dos olhos: uma vitória que custaria apenas algumas canetas de uma marca que a mãe nunca ouvira falar. Sentadas na sala de espera, a filha agora fornecia uma série de detalhes que a mãe nem imaginava ser possível para uma caneta. A atenção de Ana, no entanto, flutuava entre as explicações da filha e os movimentos feitos por um casal estranho, aparentemente muito rico, sentado à sua frente.
O homem era gordo, de olhos opacos, calvo e de cabelos desalinhados. Usava roupas caras, mas estava muito mal vestido e sua aparência não era nada agradável. Ao lado, a sua esposa, de quem falaremos mais adiante. Por hora, atentemo-nos ao marido, cujos movimentos eram obcecadamente analisados por Ana.
Ele tinha o rosto sisudo e lia uma espécie de informativo. Ana observou que a pretensa leitura era puro fingimento, porque ele levantava o olhar furtivamente para reparar o traseiro das enfermeiras e depois o voltava para o informativo que estava de ponta cabeça em suas mãos. Durante um bom tempo ele manteve a mesma posição e, deixando as enfermeiras de lado, lançava olhares, também furtivos, para os pacientes sentados ao redor.
Pousou os olhos em uma mulher que levava seus três filhos para a consulta e não economizou em caras e bocas quando as crianças começaram a fazer algazarra. A filha de Ana parara de falar sobre as canetas e ria abertamente por causa da implicância entre os irmãos - essa criança achava graça nas coisas mais pueris! O homem, porém, não via assim. Revirou os olhos e levantou um canto da boca. Desprezo, compreendeu Ana. Ele voltou à suposta leitura, para em seguida erguer sorrateiramente os olhos e depositá-lo em outra família. Tratava-se de um casal mais velho, na casa dos 45 anos, com uma menina pequena que balbuciava coisas incompreensíveis. A filha de Ana mostrou-se interessada:
- Quantos anos você tem? - perguntou timidamente e sem olhar diretamente para a menininha.
A criancinha chegou perto da filha de Ana, pegou a sua mão e emitiu sons que mais pareciam uma conversa em uma língua desconhecida. Conversava como se fosse entendida e, após concluir, soltou a mão e voltou satisfeita para o colo dos pais.
- Que?
Os pais da criança contaram que a menina tinha quatro anos - aparentava bem menos - e que havia nascido com microcefalia. Ana explicou delicadamente para a filha confusa do que se tratava e ela passou a se divertir com os balbucios, para em seguida voltar a falar novamente do material escolar. O homem gordo agora levantou o lábio superior, franziu o nariz e voltou ao informativo. Ele tivera nojo da criança, Ana concluiu, sentindo o estômago revirar.
Agora, a esposa do homem assume certa importância em nossa história. Até o presente momento, ela mantivera o queixo elevado, segurando um lenço sobre o olho esquerdo, alheia a tudo o que se passava. Ela abaixara a cabeça logo que a enfermeira se aproximara para pingar outra gota do colírio ardido. Ana reparou, com uma certa satisfação, que ela se vestia bem melhor que o marido - mas com um leve espalhafato. A mulher também tinha o rosto esticadíssimo e, mesmo incomodada com a luz, parecia manter um ar sorridente.
A mente humana pode tender facilmente ao bizarro e foi exatamente o que aconteceu com a mente de Ana. Ela imaginou a mulher morta, em uma maca, com o rosto todo esticado e sorridente e, ao lado, seu esposo gordo, desleixado e mal-humorado dizendo: “Olha, doutor, ela morreu de bem com a vida”. Imaginou a expressão de espanto dos médicos ao pensar no efeito duradouro do botox e mordeu os lábios para conter o riso. Foi salva do ridículo pela voz angustiada da filha:
- Mãe, mãe, porque ela está chorando?
Uma criança de cerca de três anos chorava alto depois de perceber que a enfermeira pingara o colírio no olho da mulher. Abraçada ao pai, soluçava, pedindo para não deixar pingar mais colírio.
- Calma, meu bem - dizia o pai. - Olha a mocinha ali como é corajosa - ele apontava para a filha de Ana, que agora sorria, preparando-se para uma possível interação que não houve porque a outra criança mantinha-se encolhida no colo do pai.
Diante da insistência da filha, Ana explicou detalhada e repetidamente o motivo do choro da criança e porque ela não queria conversar - às vezes crianças autistas têm muita dificuldade em compreender os sentimentos de outras pessoas. Satisfeita com a explicação, a menina voltou a discorrer sobre uma bolsa que vira na papelaria.
A mulher esticada olhou para a criança agarrada ao pai e pareceu condoer-se. Talvez sentisse culpa. Arqueou o corpo para a criança e sua boca se entreabriu, revelando dentes bem brancos. Esse é um sorriso real, pensou Ana, constatando que naquela senhora havia um certo ar de deslumbre, um ar de princesa da Disney no dia do baile. O marido, ao perceber o interesse súbito da esposa pela criança, enrijeceu o corpo na cadeira. Uma voz pífia, que nem foi escutada pelo pai da criança, saiu da boca da mulher:
- Tadinha! Ela está com medo, é?
O marido, sem levantar os olhos do folheto, grunhiu em uma voz que parecia vir de dentro de um poço;
- Abstenha-se, Sandra Kelly, abstenha-se. - Surpreendentemente, Sandra Kelly ignorou os grunhidos maritais e manteve sua atenção na criança que chorava.
Ana, porém, ficou profundamente chocada. Que ser mais grosseiro e desprezível era aquele homem! A filha pareceu sentir a tensão, porque passou a agitar-se, executando uma sequência de movimentos repetitivos típicos, que servem para o alívio de estímulos sensoriais que não podem ser processados por outras vias. Ana abraçou-a e perguntou sobre um certo estojo rosa com estampa de unicórnios. A criança começou a falar e aos poucos se acalmou.
Tarde demais O homem já havia levantado os olhos vis para a filha de Ana. Ele não teve coragem de esboçar qualquer expressão, porque encontrou, lhe prescrutando, o rosto de uma mãe furiosa, uma verdadeira galinha choca defendendo a cria. Um observador mais criativo imaginaria que Ana possui algum poder sobrenatural, tal a força que seu olhar exasperado exerceu sobre ele. O homem tinha abandonado o folheto, seus ombros haviam se curvado e ele fixara os olhos nos próprios sapatos. Manteve-se nessa posição por alguns minutos - devem ter parecido longas horas para ele - até ouvir a voz esganiçada da esposa.
- Vamos, Hermídio, é nossa vez.
Ela levantou-se, ágil, magra, etérea, esquálida e esticada, majestosa em um salto anabela. Estava quente, mas mesmo assim, enrolou a echarpe esvoaçante no pescoço enrugado, deixando as pontas tocarem o rosto do esposo com uma certa - e deliberada? - força. Deu alguns passos, ignorando o marido e olhando para Ana. Aquela boca ainda mais esticada sorria?
Com algum esforço, o homem levantou-se da cadeira e andou desajeitadamente, arrastando os pés atrás da esposa. Hermídio não tirou os olhos dos próprios sapatos, mas pareceu muito aliviado ao adentrar com Sandra Kelly no consultório médico.
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