AGOSTO EM MIM >> Sergio Geia



Há uma película turvando a imagem. 

Ou, é como se houvesse. 

Os letreiros da casa-consultório ocre se embaralham: dr. alguma coisa, de alguma coisa, especialidade qualquer. Quase ninguém caminha pela rua. Aqueles que resolvem descumprir regras básicas de sobrevivência, parecem sem cor, ainda que um velho de barba esbanje um vermelho em camisa; ainda que uma mocinha de coxas grossas decline de panos em sua saia justa da moda. Um homem está na garagem, portão para dentro, observando a rua; parece assustado com o que vê, ou com o que não vê. Do outro lado, uma mulher lava a calçada, esfrega a vassoura com força, deseja retirar tudo de mal que salpica aquela superfície, nem que o concreto venha junto. O mundo está ao contrário e ninguém reparou, escuto a voz de Cássia. 

Única cor, opaca, para todos. Como se todas as cores do arco-íris, todos os vermelhos, azuis, amarelos, verdes do universo tivessem de uma hora pra outra perdido a potência; deixaram de brilhar. 

O sábado amanheceu chovendo; agora parou, mas o céu está nublado. Há um silêncio rural nas ruas. 

Dias estranhos. 

Levantei, tomei banho, meditei, tomei uma xícara de café, fiz minha higiene, desci o lixo, respondi o zapp. Esperava tio Marcos com seus papéis para o imposto de renda quando o celular tocou, era ele dizendo que desistira, que Ricardo pegou no pé, pediu para ele não sair de casa, que o prazo de entrega seria prorrogado, e então me vi só, como ontem, antes de ontem, amanhã, depois de amanhã, com tempo livre para escrever. Mas escrever o quê? 

Há semanas não escrevo. Como se esse mundo de cabeça pra baixo tivesse levado toda a minha vontade de escrever coisas leves, uma boa crônica reclama por leveza. Certo que ando trabalhando muito, o trabalho oficial, aquele que me paga as contas, mas sempre reservava um tempo, geralmente aos finais de semana, ou de manhazinha, ou à noite. De uma hora para outra, o encanto se perdeu. 

Tive que cancelar um final de semana com uma amiga em Sampa. Meu trabalho me mandou pra casa, home office, minha rotina virou: não saio de casa, não tenho contato com amigos, família, não vou mais ao bar, ao restaurante, ao cinema, ninguém vai. Em vez de futebol, o que vejo na tevê são as notícias, daqui, de Sampa, da Itália, da Espanha, da França, de tanta gente morrendo, de hospitais abarrotados, de médicos e enfermeiros trabalhando mais do que podem, de tanta aflição, tanta preocupação. 

E amigos compulsoriamente ainda comparecendo ao trabalho. E amigos compulsoriamente sem trabalho, sem o ganha-pão, da noite pro dia. E amigos compulsoriamente internados em hospitais, doentes, confusos, isolados de carinho. O mundo enlouqueceu. 

Ando mal. Me dá pena do planeta, uma tristeza com os nossos rumos, com o que estamos fazendo. Ontem tentei controlar os horários para esse tipo de informação. Me imunizar um pouco, senão piro. À noite, não vi o jornal, não li as mensagens nos grupos de whatsapp. Procurei um filme, descobri a sexta temporada de Vikings, na Netflix, assisti Era uma vez em... Hollywood. Me distraí do jeito que deu. 

Hoje recebi um vídeo da Cláudia Raia, pedindo que o Brasil pare um minuto às 18h, para rezar pela saúde das pessoas, todos os dias. Normalmente não compartilho esse tipo de informação, aliás, nem abro esses vídeos que chegam. Mas desta vez, compartilhei. Acreditei. Acredito. E regulei o despertador do celular para as 18h. Um minutinho, apenas um minutinho de oração, pela saúde do mundo. A oração tem poder. 

Se eu fosse Caio, diria que agosto entrou em mim, neste março, quase abril. Um agosto por dentro, viral, doído. 

Nádia Coldebella disse, aqui mesmo no Crônica, que o mundo surtou. 

Eu não surtei. 

Ainda. 


 Ilustração: Edvard Munch

Comentários

Unknown disse…
Dias estranhos mesmo. Uma tristeza que a humanidade deu de presente a si mesma.Tenho em mim a certeza que vai passar e quero voltar a ver seu bom humor, sutil e delicado fluindo novamente.
Ricardo Azeredo disse…
Talvez seja desse caos que o mundo está a precisar para desvirar do contrário que se encontra, meu amigo. Sinceramente, nunca vi tanto ódio e egoísmo. Que o futuro seja mais leve para nossos filhos. Abraço Serginho
sergio geia disse…
Dias estranhos, caro Afonso. A crônica é leveza, alegria, humor. Fico na torcida contigo. Ricardo, meu amigo, essa pandemia parece estar atiçando ainda mais a pobreza de espírito da humanidade. Que passe logo, a pandemia e a estreiteza de espírito.
branco disse…
tempos desconhecidos para os mais jovens, tempos estranhos para muitos que já viveram alguma coisa parecida. aos poucos, espero, as coisas vão retomar o ritmo normal e vamos voltar a lidar com os problemas que nos são familiar, não sou tão otimista que acredite numa melhora da raça humana, apenas vamos retomar o que ali estava antes. o que resta? bom, algumas coisas boas e belas, e entre essas ler suas crônicas.
os : não surte, sorte!
Darci Siqueira disse…
Já houve no mundo um homem muito sábio de nome Salomão, sua sabedoria foi dada em II Crônicas 1:11, este recebeu sabedoria e riquezas mais do que todos os homens em todos os tempos; isso aconteceu em oração, Deus se alegrou de seu pedido e por essa razão escreveu Salomão que Deus ouviu sua oração e disse em: II Crônicas 7:14, que se o meu povo que se chama pelo meu nome, se humilhar e orar e se converter dos seus maus caminhos, então, eu ouvirei dos Céus, e perdoarei os seus pecados, e sararei a sua terra.
Albir disse…
Resta-nos a solidariedade, ainda que na dor.
Cristiana Moura disse…
E agora que já é abril? já é fim de abril!!! A realidade é distópica e a gente vai, aqui e ali se ajeitando, né?

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