DR. MÁRCIO E SUA AVENTURA NAS MONTANHAS - 2a parte >> Zoraya Cesar

Dr. Márcio, ao completar bodas de chumbo com a vida, cismou que deveria ser aventureiro e descolado, cidadão do mundo, popular, como seu cunhado. 

Vimos na primeira parte (leia aqui), que Dr. Márcio subiu a montanha e passou  a noite num acampamento. Além de atrasar a caminhada do grupo, não conseguiu comer nem dormir. Para piorar, sentia-se constantemente avexado e humilhado pela presença de uma montanhista nonagenária, lépida, fagueira e muito, mas muito mais ativa que ele (se bem que ela era melhor até que os guias, verdade seja dita. Mas vamos à continuação da história). 

INGLÓRIO AMANHECER 

Cinco da manhã. Depois da noite insone, úmida, fria e desconfortável, Dr. Márcio cochilou de cansaço. Não durou nem dez minutos. Despertou com os gritos dos guias urgindo a que levantassem acampamento. O tempo dera uma virada inesperada e um vento ululante e mal-humorado empurrava as lonas das barracas, ameaçando levar tudo pelos ares, trazendo nos braços espessas nuvens de chuva.  

As articulações enrijecidas,
as costas doendo. Dr. Márcio
parecia uma tartaruga
centenária tentando
desvirar o casco.
Enregelado, o corpo duro e as articulações presas, Dr. Márcio parecia uma tartaruga pesada e anciã tentando desvirar o casco. Levantar foi difícil, bem difícil. Mas pior foi ver a vetusta montanhista desmontar a barraca dela num zás e perguntar-lhe, na maior inocência, ‘tá precisando de ajuda aí, meu velho?’. Velho, ele? E aquela belzebenta, irmã de Matusalém, era o quê? Sim, pensou, preciso que o diabo te carregue de volta, sua fugida do Hades.

O estômago roncando, Dr. Márcio sentou-se para comer. Abriu a mochila. Olhou. Quase chorou. Os pacotes de açúcar, café solúvel, leite em pó, o pão, abertos, o conteúdo espalhado e maçarocado. Ele esquecera de guardar seus comes e bebes dentro de um único recipiente fechado, conforme vira nas aulas... 

Quem o salvou foi, como já esperávamos, e eu não sou de decepcionar ninguém, a velhinha serelepe. A fome não deixa espaço para orgulhos bestas e Dr. Márcio aceitou, agradecido, o lanche que ela oferecia. O café, sem açúcar e sem afeto, estava tão ralo que dava para ver o fundo do copo; o leite, desnatado; o pão integral duro, recheado de tofu. Tofu mesmo, pensou, num trocadilho infame, mas bem próximo da verdade. “Tá explicada a aparência de pergaminho mofado que ela tem, é essa gororoba horrível que ela come”. Mas o buraco aberto pela fome estava fundo o suficiente para ele engolir tudo, sem hesitar. 

A DESCIDA. OU QUANDO NEM O SANTO AJUDA. 

O guia-chefe reuniu o grupo para as últimas orientações antes da partida. Pediu que todos descessem com calma, os auxiliares estavam ali para ajudá-los a chegar em segurança. Por pura implicância, talvez, nesse momento o vento soprou com mais força, e, cansado de carregar as nuvens, prenhas de chuva, largou-as bem em cima da montanha. 

Nenhum discurso motivacional seria mais eficaz. Alunos e guias-auxiliares começaram a descer. Dr. Márcio não. Seus pés ainda inchados, doloridos e bolhosos não entravam nos calçados. Impedido de descer descalço, por questões de segurança, o jeito foi cortar parte da botina. O que levou um bom e precioso tempo. Quando, finalmente, conseguiu se calçar só restavam ele, o guia-chefe e... sim, ela mesma. 

Se por mal dormido e mal alimentado; se pelas dores excruciantes nos pés e nas costas, o fato é que, ao chegar no ponto de descida, Dr. Márcio olhou para baixo e empacou. (Talvez fosse, pura e simplesmente, uma crise de acrofobia na hora errada. Por que alguém com medo de altura faria montanhismo eu não sei. Mas é o Dr. Márcio, pronto, isso é explicação suficiente). 

Apesar do frio, o guia-chefe começou a suar. Já se via tendo de chamar o resgate para tirá-los dali, arruinando sua reputação. No entanto, às primeiras gotas de chuva, Dr. Márcio se mexeu. O guia ficou mais animado. No meio do caminho, porém, num trecho mais escarpado, Dr. Márcio agarrou-se à pedra como um carrapato faminto. Gritava que ia morrer ali, que o deixassem em paz. Depois calou-se, os olhos esbugalhados, os lábios roxos, a pele úmida. 

A velhinha, uma verdadeira Orixá, à vontade entre os elementos, tirou um calmante do bolso e enfiou-o goela abaixo do nosso catatônico amigo. Outro guia subiu para ajudar e pegou-lhe a mochila. E assim, lenta, muito lentamente, desceram Dr. Márcio. 

Chegaram, enfim, duas horas depois do previsto, cansados, estressados (menos a velhinha, que só de montanha tinha mais anos que a idade dos guias...) e encharcados (sim, a velhinha também, que era safa mas não era impermeável). 

A VERGONHA SUPREMA

Dr. Márcio voltou para casa arrasado. Mais uma vez, a tentativa de transformar sua vida em um filme emocionante recebera o troféu framboesa de ouro. Mas ele não se daria por vencido. Jamais contaria a verdade. Diria que tudo fora maravilhoso, uma experiência única, sem dúvida, mas ele preferia tentar outros esportes radicais. 

E assim fez. Como bom advogado, falou com autoridade e lábia tais que seria impossível duvidar. 

Seria. 

Pois a velhinha, sacana como ela só, além de montanhista, era videomaker. Filmou toda a saga, discretamente, e colocou-a na rede, indiscretamente, com nome e sobrenome dos envolvidos, tão logo chegaram ao sopé da montanha. E como o cunhado do Dr. Márcio fora escalador e vivia na internet, acabou que o filme foi parar em suas mãos quase que na mesma hora da postagem. E ele o mostrou à irmã...

A esposa de Dr. Márcio deixou que ele terminasse de falar para só então desmenti-lo, sem clemência ou paciência. Seu irresponsável, quase morreu, onde já viu tamanho descalabro, não tem vergonha? Deu pra mentir depois de velho?, blá, blá, blá, vou passar duas semanas fora, meu irmão vai ficar aqui, pelo visto você não pode ficar sozinho, blá, blá, blá...

O cunhado ria de chorar, a cabeça enterrada numa almofada, não fosse a irmã brigar com ele também.

Dr. Márcio baixou a cabeça. Foi para o quarto, tomar um banho, um analgésico e um calmante. Como bom advogado, sabia quando a sentença era inapelável. 

Outras aventuras do Dr. Márcio

A aventura inflável do Dr. Márcio - chegara àquela idade em que, ou concretizava uma aventura sexual fora do casamento, ou só dentro do caixão, talvez uma dança sensual e macabra com os vermes. Achou melhor experimentar com uma mulher de borracha e vento, para começar.  

Outra malfadada aventura do Dr. Márcio - não tendo dado certo com a boneca inflável, Dr. Márcio resolveu partir pra grosseria. Esperou a mulher e o cunhado viajarem para conhecer uma boate mais que suspeita, indicada por um amigo do escritório, de onde, garantiu esse amigo, não sairia sem uma aventura sexual. Se saiu ou se entrou, só lendo para saber

Foto - 
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Framboesa de Ouro (no original em inglês Golden Raspberry Awards, abreviado Razzies e Razzies Awards) é um prêmio cinematográfico humorístico dos Estados Unidos, concebido como uma paródia do Oscar pelo publicitário de Hollywood John Wilson. (Serve para indicar os piores filmes do ano). Também conhecido por Troféu Abacaxi
https://pt.wikipedia.org › wiki › Framboesa_de_Ouro

Comentários

Érica disse…
Cunhado sacana... Mas o Dr Márcio, em vez de ficar chorando pitangas, conformado, devia utilizar suas reais habilidades e processar a tal velhinha descarada. Afinal, direito de imagem né?.. Ele pode virar o jogo e ganhar uma boa grana dela kkk
branco disse…
desta vez li (reli a primeira parte novamente) e estou rindo até agora. você transita pelos estilos com graça e rara competência. se você fosse uma voz, pra mim, você seria ronnie james dio. agora me dê licença, vou rir mais um pouco !
Anônimo disse…
Mais um mané metido a malandro! E ainda por cima não se atualiza. Hoje tem as "roboas", mulher inflável é coisa do passado!Até como advogado vai acabar sendo substituído pelo Watson da IBM! Hahaha... https://www.youtube.com/watch?v=PiOfA5WYup0
Clarisse Pacheco disse…
Rindo até agora com as imagens da tartaruga anciã virada e o carrapato faminto. Huahuahua
Albir disse…
Fico aqui sem saber se rio ou me solidarizo com o Dr. Márcio. Só tenho uma certeza: se esse personagem pudesse, fugiria de você, Zoraya!
Marcio disse…
Leitor 1: - E aí, já leu o texto da Zoraya da última sexta-feira?
Leitor 2: - Claro! KKKKK... estava hilário, como sempre!
Leitor 1: - Eu fico imaginando como é o sujeito que inspirou esse personagem...
Leitor 2: - Hahaha! Eu também! A Zoraya não tem qualquer misericórdia por esse zé-mané.
Leitor 1: - Só tenho uma certeza: ele também se chama Marcio, porque é tão idiota que, se a Zoraya usasse outro nome, ele não perceberia que a "homenagem" é para ele.
Leitor 2: - Ah, disso eu também tenho certeza!
Leitor 1: - Na próxima desventura, esse cara ainda vai ser sodomizado por um travesti.
Leitor 2: - E a Zoraya mata todo mundo, mas não tem a piedade de matar o Dr. Márcio...
Zoraya Cesar disse…
Erica - na verdade, o cunhado não tem culpa se Dr. Márcio não aproveitou a vida. O cunhado está ali apenas fazendo o papel dele. De cunhado.

Lord White - você é um luxo!!! Black Sabath!? Eu? Quero muito corresponder às suas comparações pra lá de generosas. Feliz total, eu, agora.

Anônimo - hehe, pois é. Dr. Márcio é old fashioned.Se pra ele boneca inflável já seria uma aventura, imagine uma 'roboa'. Seria um desastre ainda maior. Mas é uma ideia heheheh

Clarisse - confesso que ri tb quando me veio a imagem do carrapato faminto

Albir - faça os dois! Ria e se solidarize com o coitado. hahaha, mas ele não pode fugir de mim, ele não consegue nem fugir do cunhado!

Márcio - eu ri tanto, mas tanto com seu comentário! Já expliquei q o personagem não é baseado em vc, mas vc não acredita. E não, não adianta insinuar nada, q não vou matar o Dr. Márcio.

A todos, mais uma vez, agradeço demais a leitura, os comentários, a generosidade.
Gente do céu, esse homi num aprende! Dr. Márcio é o melhor! É verdade esse bilete...

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