O MARTELO DO BEM - Sexta parte >> Albir José Inácio da Silva
(Continuação de 21/10/2019)
A conversa ia animada, enquanto
as compras eram separadas e embrulhadas, com direito a cafezinho e
sorrisos. Até que chegou uma freguesa
com uma adolescente de uniforme. Antes de cumprimentar, a mulher perguntou:
- Foi vocês que atropelaram o
Sabugo?
- Foi um acidente. Pode acontecer
com qualquer um – defendeu-se Margô.
- Nós adoramos bichos. Temos até
um gato – completou Déti, com um sorriso.
- Um gato preto, né? – perguntou
a menina.
- Sim, Tição é a criatura mais
preta e mais doce que nós conhecemos – respondeu a inocente Margô.
Quando saíram do Armazém uma
Kombi com alto-falante conclamava os cidadãos de bem para uma reunião urgente
na Igreja Nova Cruzada. Na praça, já montavam a decoração da festa. Não estavam
interessadas na reunião da Irmã Penha, mas Déti ficou muito entusiasmada com a
festa.
Margô se sentia culpada por não
partilhar aquela animação. Sempre ela puxando pra baixo. Às vezes ficava feliz,
mas um gesto, uma piada ou um olhar atravessado bastava para cancelar o sorriso
que só Déti era capaz de devolver.
Margô vive com a certeza de que, desde
que saiu do transe pela voz da enfermeira no terraço do Hospital Infantil, ela
continua lhe salvando a vida todos os dias. Não fosse a determinação de Déti, estaria
ainda olhando as roupas da filha no quarto. Ou, pior, talvez tivesse se rendido
ao assédio do marido, que por algum tempo continuou rondando a sua tristeza.
Lembra-se que a enfermeira amparou
seus passos até a cantina porque eram quatro da tarde e ela não tinha comido
nada. Depois, prostrada e obediente, foi conduzida à sala de espera na portaria
e aguardou o final do plantão.
No dia seguinte, o enterro da
filha, as acusações e ameaças do marido, o consolo e a proteção de Déti. Só a
mãe de Margô apareceu, mas para dizer-lhe que o marido estava certo, não se
pode afastar uma criança de seu pai, e o que estava passando era fruto da sua
rebeldia e pecado.
Nas semanas seguintes, o marido
percebeu que já não tinha qualquer poder sobre Margô e propôs uma partilha em
que ficava com o apartamento e os móveis. Margô ficou com a caminhonete velha
em que colocou duas malas e foi pra casa de Déti.
Nos primeiros dias, Margô ficava aguardando
a volta de Déti do plantão. Sobreviveu com os cuidados e carinho da amiga. Em
dois meses já fazia compras e cozinhava. No terceiro mês não puderam evitar os
planos porque sonhar era preciso.
Mas a história nascida dentro do
Hospital Infantil entre uma enfermeira e a mãe de uma paciente começou a
incomodar algumas pessoas e principalmente a administração. Déti percebeu que
seus dias ali estavam contados.
O ambiente mudou também no prédio
em que moravam. Os cumprimentos, antes efusivos e sorridentes para a enfermeira
prestativa, se transformaram em monossílabos ou silêncios. Juntas não eram
bem-vindas.
Com as famílias já não contavam
mesmo, e a notícia de que estavam morando juntas atraiu mais desprezos e
maldições. Quando tudo está ruim, resta sonhar. E sonharam. Uma casa numa
cidadezinha rural, tranquila e distante, bichos pra cuidar e uma horta sem
veneno. Magia, paz e harmonia com a natureza, sem incomodar ninguém. Era pedir
muito?
Seis meses depois do quase
suicídio, atropelaram o Sabugo.
***
Irmã Penha fechava o caixa de
três barraquinhas da Nova Cruzada na Festa da Roça com um sorriso pelo sucesso
das vendas, quando ouviu os gritos. Correu para perto do coreto e viu, sentada
no banco de pedra e cercada por um grupo de pessoas, uma de suas fiéis. Transtornada, ela gritou de novo quando a
religiosa se aproximou:
- Meu filho, Irmã Penha! Ninguém
acha! Eu vi a bruxa dando doce pra ele!
(Continua em 15 dias)
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