INDETERMINADO >> Carla Dias >>


Um artigo publicado na internet informou que ela deveria viver o que lhe era oferecido, criando, dessa forma, muitas oportunidades de encontrar a tal da felicidade. 

Ontem mesmo, ela soube que a felicidade para um seria conseguir a vaga de trabalho para o qual fez entrevista. Teve outro que declarou que seria uma bebida quente em dia frio. Houve quem jurasse que a felicidade, a mais pura e plena, seria uma viagem pelas águas do Oceano Atlântico.

Para ela, a felicidade, assim como o ser humano, é viva, independente. Pensa que, prendê-la em um artigo de jornal, esmiuçá-la em ensaios, poesia, estudos científicos, ruminá-la em longas conversas, apenas alimenta a curiosidade sobre o que é felicidade em meio à diversidade na qual ela se molda, enquanto cria arte, fecunda desejos, expande horizontes.

Felicidade, quase sempre, cabe em uma promessa de felicidade.

Conhece quem adora processos, incluindo-se nessa lista. Enxerga processos como mil felicidades sendo perseguidas por dois mil obstáculos, intensamente reverberantes, em tom de descobertas e aprendizado. Acredita que felicidade fácil é, na verdade, resultado. As pessoas a sentem como se fosse um repente, mas se trata mesmo é de um desencadear de escolhas, buscas e apostas. 

Acredita que as pessoas gostam de sentir a felicidade na intensidade da surpresa, por isso se permitem ser arrebatados por suas juras. 

Assim feito ela. 

O que mais a deslumbra na felicidade é a sua efemeridade. Em contraste com a tristeza - que se instala, colocando os pés sobre o sofá, ligando a tevê e mastigando o tempo da sua vítima, e que não se importaria de morar na pessoa para sempre -, a felicidade tem pressa, é sentimento vigoroso, adora saídas de emergência e leva ao cometimento de erros bárbaros, assim como de gestos grandiosos.

Acontece de, para uns e outros, a felicidade ser sinônimo de invencionice. Eles se negam a reconhecer sorrisos que não os coreografados para determinadas ocasiões. Contudo, a felicidade, ela acredita, não é de se ater aos bons modos ou de caber em etiqueta. 

Esgoela-se na sua agitação. Feito ela.

Conheceu para quem a felicidade era aprender outro idioma, conseguir enfrentar o medo de saltar de paraquedas. Teve para quem ela foi o recuperar o fôlego, quando parecia que a vida havia abandonado o corpo. Na sua jornada de pesquisadora de felicidade, encontrou para quem a dita era o fim da saudade, o recomeço imposto, o reconhecimento da história, a justiça de fato.

Para ela, a felicidade ainda é um mistério cadenciado, que jorra sentidos, fornece álibis para desejos diversos. Gosta de senti-la, quando a tal decide visitá-la. Embriaga-se dela, mas não permite que fique. Muito mais amplo é o mistério que a leva a temer a efemeridade que guia a felicidade.

E se a felicidade durar somente um segundo? O que ela fará com o resto da vida?

A tristeza se gaba de ser mais forte do que a felicidade, porque pega o pouco que lhe oferecem e transforma em um banquete. É sedutora ao inspirar ruminação, doar tempo indefinido para contemplação de mágoas e desalentos. 

Há dias em que a felicidade e a tristeza pelejam pela atenção dela. Já engoliu comprimidos, na tentativa de amenizar a agonia de não estar lá, nem cá. Fez terapia com um senhor que lhe garantiu que a felicidade era superestimada. Talvez isso seja verdade, mas às vezes ela deseja a felicidade por perto, nem que seja para observar sua sombra no chão. 

Porém, sente-se adequada à tristeza.

A vendedora de chapéus, da loja da esquina, contou a ela que a tristeza é feito uma lâmina afiada que usamos para cortar vento. Agonia sem fim. Às vezes, a felicidade se passa por pequenas conquistas que desaguam em grandes desapontamentos. Porque a tristeza é prefácio e epitáfio da felicidade. 

Ela constatou, enquanto a vendedora enfiava um chapéu desprovido de qualquer charme em sua cabeça, que a tristeza era a prisão da felicidade. 

A tristeza aquece, incita a felicidade. E com sua deselegante necessidade de esmaecer o que vibra, torna a felicidade um fetiche, um objeto de penúria.

Ela vive assim, em um misto de felicidade desabonada e tristeza egocêntrica. Despe-se de ambas a cada canção espalhada pela casa. Canções a distraem de seus dilemas. Acontece de a distraírem da própria existência, como se a levassem a se confundir com melodias e ritmos.

Não consegue parar de pensar que a felicidade da tristeza é estancar felicidade.


Imagem: Eine Kleine Nachtmusik ©  Dorothea Tanning


carladias.com
talhe.blogspot.com

Comentários

branco disse…
entre a felicidade e a tristeza existe uma "amiga" implacável chamada expectativa. nada é por acaso, tampouco sua profunda e sensível crônica.
Albir disse…
Tristeza que pede felicidade, Felicidade que pede tristeza, tristeza que pede. Como diz Drummond: "Eta, vida besta!"
Carla Dias disse…
Branco, obrigada! E expectativa é danada, não? Pode nos levar aos piores lugares, mesmo quando inspira os melhores desejos.

Albir, amém ao Drummond. Besta que só!

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