ABUSOS NOSSOS DE CADA DIA >> Mariana Scherma

"A língua é algo pequeno, mas que baita estrago pode fazer" (da internet)

Quando a gente fala em abuso, logo pensamos no sexual, no infantil… E eles são terríveis, merecem destaque, merecem ser denunciados, merecem ser expostos e, principalmente, punidos. Mas tem também alguns abusos aos quais nos submetemos diariamente por medo de perder algo do qual precisamos de fato. Também são abusos — beeem menores, claro. Bem menos danosos, mais ainda danosos. E o pior é que a gente sofre com eles todo dia e o permitimos colocar em xeque nossa autoestima e nossa capacidade profissional.

Ser jornalista (mas acho que posso incluir aqui qualquer profissional da comunicação) é aceitar todo o tipo de trabalho freelancer (manda frilas!) para complementar a renda. Ser da comunicação é ganhar mal — a não ser que você seja, sei lá, o William Bonner. Ser jornalista é ter um pouco de medo de recusar frilas porque sabe lá quando vem o próximo. E aí você vive enlouquecido em casa, porque é complicado dizer não.

Numa dessas, eu aceitei frilar a uma profissional de outra área — que não vem ao caso expor. Eu escrevo. Ela finge que revisa os termos técnicos e o texto é postado. Da minha parte, eu garanto qualidade, penso em temas diferentes, faço pesquisa bem feita e passo longe de plágio. Da parte dela… Bom, ela me paga, o que já é bastante atualmente.

Isso já faz uns oito anos e eu nunca, nunca, nunca tive um aumento. Quando falo em aumento, ela desconversa ou pisa na qualidade do meu trabalho. Mas pisa feio! Um dia, faltou um “s” em um plural de uma palavra e eu tive que ouvir coisas que ninguém nunca me falou.
Mas, coincidentemente ou não (eu acredito mais na parte do ou não), ela sempre me esculacha quando falo em aumento. Eu falei que não havia subido meu preço há quase nove anos e ouvi um “pu%$ que par%&, que bos%& de texto”.

Veja bem, tinha faltado um “s” em uma palavra. Não estava uma bos%& de texto. Não mesmo. Pense comigo: se meu trabalho fosse tão ruim assim, por que raios ela continuaria comigo por oito anos? Mas esse tipo de gente consegue entrar na nossa cabeça e faz a gente pirar um pouco (pouco?).

Um dia, ela já me pediu para fazer designer e eu disse que não é minha área, sou jornalista. E ela teve a cara de pau de avisar que eu tenho que fazer de tudo um pouco. Questionei que não. Um médico não precisa fazer cirurgia vascular, cardíaca e ainda fazer um parto no mesmo dia, precisa? Quem faz de tudo um pouco não se especializa em nada, confere? Ela apenas não me respondeu. Gente muito segura de si não aceita ser questionada.

Demorou um tempo para eu perceber esse relacionamento abusivo e trabalhista em que eu me meti. Agora, eu sei que vai acabar. Ela ainda não me respondeu se vai subir meu valor ou me abandonar porque provavelmente está correndo atrás de alguém que escreva mil palavras por dez reais. Boa sorte pra ela.

Mas a lógica do abuso é essa: você sabe que está ruim, mas tem medo de ficar sem. Não mais com essa fulana. Eu demorei oito anos pra perceber. Enquanto isso, podem mandar frilas, por favor.

P.S.: fiquei uma temporada longe, desculpa! Minha vida mudou 180 graus e logo menos eu falo dessas mudanças por aqui!

Comentários

Albir disse…
Mais importante do que se livrar da abusadora foi a compreensão que você finalmente teve de toda a situação. Outros exploradores vão surgir, mas você não vai mais aturá-los por oito anos.

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