ACADEMIA, LIVROS E HALTERES >> Albir José Inácio da Silva

- Você está muito perto. Suas pernas são compridas – além da boa-vontade, a voz também era gentil. Ajustou ele mesmo o aparelho e o meu exercício ficou mais fácil.

Na semana passada, última vez que vim à academia, fiquei observando esse mesmo marombeiro, confesso, com algum desprezo. Ele era a futilidade em movimento e ritmo. A cada gesto olhava-se no espelho, procurando o melhor ângulo para os músculos retesados e mal contidos pela camiseta. As logomarcas famosas brilhavam nele em tênis, camiseta e meias.

Mas havia alguma gentileza no seu olhar, e isso me dava algum remorso. Pouco, mas dava. Pouco porque percebi várias vezes que também me desprezava. Chegou a fazer careta olhando meu tênis com lama seca, mas disfarçou com um sorriso.

Eu era desleixado como fica bem a um intelectual, camiseta grande e esgarçada, short grande e desbotado e um indefectível livro de sebo para abrir no painel da ergométrica. No fundo ele tinha uma humildade de marca e eu, uma arrogância maltrapilha.

Eu só estava na academia por conselho médico, ia lá de vez em quando, irregular e enfastiado. Ele reinava por ali, falava com todos, sorria. Estava no seu habitat, feliz e adaptado. Éramos uma antítese. Mas, como o que conta para a amizade é o que se fala e não o que se sente, fomos nos aproximando.

Lado a lado nas esteiras, desfilamos nossas biografias, gostos, diferenças e pouquíssimas coisas em comum. Ele correndo a dez quilômetros por hora e eu caminhando e resfolegando a minha disritmia.

- Esse negócio de livro não é pra mim não – repetia ele com um sorriso de menino grande a cada autor que eu referia.

Passou pela faculdade olhando alguns resumos, colando aqui e ali, assinando trabalhos em grupo. Mas aceitou interessado o Nietzsche que estava na minha mão. E falamos sobre consumismo, culto ao corpo, frivolidade e outros defeitos que eu costumo identificar nos outros.

Ele ajudava nos aparelhos, quase como um personal, e me ouvia, atento, discorrer sobre a vida, o homem, o pensamento e o poder. Demorávamos à porta da academia em prolongadas despedidas.

Por semanas seguimos essa rotina.  Ele cada vez mais interessado, levando os livros que eu trazia, fazendo perguntas e propondo temas. Quanto a mim, a regularidade dos exercícios me fazia bem. Estava mais disposto, passadas mais firmes, coluna mais reta.

Eu estava feliz com o meu trabalho: ele já não se admirava no espelho, e parava longos períodos olhando o vazio como se estivesse finalmente raciocinando. Cumprimentava as pessoas, mas sem efusividade. Sorria, mas sem afetação.

Ainda me ajudava nos exercícios, mas já não estava tão atento. Às vezes eu tinha que pedir a ajuda. Em certas ocasiões me atrapalhava mesmo com suas perguntas e comentários insistentes que me faziam perder a conta dos movimentos. Claro que eu sentia amizade e comemorava seus progressos intelectuais, mas precisava concluir minha série.

Passou a me esperar à porta da academia com algum livro ou artigo na mão, e me seguia por todos os aparelhos. Percebi alguma ironia nos sorrisos à nossa volta, como se aquela ligação fosse mais que amizade. Mas ele não se importava. Para evitar constrangimentos, preferi marcar nossas conversas em cafés ou bibliotecas.

Até que ele sumiu. Depois de uma semana liguei preocupado e ele disse que estava estudando aí umas coisas, que aquela academia já não o interessava mais, talvez voltasse à universidade. Eu quis marcar em algum lugar, mas ele disse que me ligava.

Não ligou nem apareceu mais. Eu toquei a minha vida porque já tinha me dedicado bastante àquele moço.

Hoje saí cedo pra academia e, ao cruzar a praça, vi o ex-quase-fisiculturista sentado no banco. Transtornado e sujo, com um semblante de quem não tivesse ainda concluído a noite, levantou a lata de cerveja como quem oferece, e me olhou através da fumaça que soltava em anéis concêntricos.

- Quer conversar sobre futilidade, culto ao corpo e ostentação? – perguntou sarcástico.

Por instantes busquei as palavras para um discurso incisivo e acachapante, mas nenhuma pareceu adequada.

Ele ainda murmurou alguma coisa sobre depressão, limite e suicídio, mas eu preferi me afastar, jurando pra mim mesmo que voltaria com o texto apropriado.

Segui para a academia repassando métodos, assoviando remorsos e arrotando filosofias.

Comentários

Zoraya disse…
'No fundo ele tinha uma humildade de marca e eu, uma arrogância maltrapilha.
" - amei essa frase, Albir. E insisto numa 2a parte com final feliz kkk. beijos fisioculturistas
Carla Dias disse…
Ah, o meio-termo... Nada como equilibrar as coisas para não se perder em somente uma delas. Ótima crônica.

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