POR UM ESQUELETO APENAS >> Zoraya Cesar

Faltava somente um período, um mísero período, um mísero e mesquinho período para o maldito curso de técnico em enfermagem da Turma 05 terminar. Um curso que teria duração regulamentar de dois anos e já chegava a quase três. Tudo por causa do ominoso e execrável novo diretor, um ególatra ensandecido que se achava o maior administrador da história desde Dario I (ele ouvira falar, em algum lugar, que o imperador havia sido um grande administrador). Ele mesmo, porém, era menos que um papalvo, incompetente para gerenciar um carrinho de pipoca que fosse. Só estava no cargo porque seu cunhado era influente na política, vocês sabem como são essas coisas.

De forma que, em menos de um ano, o que era uma escola de alto nível estava rapidamente decaindo, ameaçada de perder qualificação no MEC e ser rebaixada à lama.

Dentre os vários problemas apontados, dentre as diversas deficiências relatadas, a que mais se sobressaía, por risível e absurda, era a falta da peça principal do laboratório de anatomia: um morto. Um morto em estado esquálido, desnudado de suas roupas, de suas carnes, de sua identidade — um esqueleto, puro, simples, ingênuo, até, em sua morte esquelética, um reles esqueleto era o que faltava para que o curso terminasse com validação pelo MEC e todos pudessem se formar em paz. Os outros problemas eram contornáveis; esse, não.

Os quase formandos estavam em polvorosa, desesperados para receberem o diploma e assinarem contratos de trabalho. Alguns pensavam em entrar na justiça; outros, em pedir transferência; alguns outros não pensavam em nada, ficavam a bater cabeça nos corredores. Mas havia um pequeno grupo que... bem, falemos deste grupo daqui a pouco. 

E o diretor, no meio de toda essa celeuma? Professores irritados, alunos revoltados, o MEC batendo às portas... Ele, verdade seja dita, não dava a mínima. Dizia que um período a mais, um período a menos para terminar o curso não faria diferença, pois sempre haveria trabalho para técnicos de enfermagem, aquela juventude era muito impaciente. Afirmava que o MEC estava sendo por demais exigente, querendo prejudicar a escola por causa de uns ossinhos à toa. Dizia, às gargalhadas, que, se ele se enfezasse, iria pessoalmente ao cemitério local agarrar algum esqueleto abandonado.

Naturalmente, esse comportamento desleixado provocava emoções as mais diversas entre alunos e professores. E quando digo as mais diversas, eu as apresento: angústia, indignação, ódio, revolta, ódio, aversão, ódio, ódio, ódio. Especialmente em um grupo de quatro alunos — aquele, do qual lhes falei — que tinham propostas concretas de efetivação nas clínicas onde estagiavam, e precisavam, portanto, desesperadamente, do diploma. Entre os professores, havia uma que se desgrenhava de raiva. Decana da classe de dissecção, ela dedicara sua vida àquele que era considerado — até então — o melhor curso de técnico de enfermagem da cidade.

Os quatro alunos não podiam prescindir do diploma no final do semestre. A professora não podia pensar em ver sua escola, a coisa mais importante de sua vida, perder qualificação no MEC. E quando o desejo é muito, quando os sentimentos estão na mesma vibração, bem, vocês sabem, os semelhantes se atraem. O Universo conspira. E o Inferno se regozija.

E foi assim que um dia os cinco se encontraram, talvez por acaso, talvez por sincronicidade, na lanchonete. Puseram-se a conversar, a princípio, por meias frases e insinuações veladas, até que o assunto ficou sério, e as vozes baixaram alguns tons, e os olhares se tornaram cúmplices, os cinco unidos num único objetivo. Dinheiro para comprar um esqueleto, não tinham. Contatos no submundo para traficar um, também não. Saber o lugar certo onde cadáveres eram desovados na periferia, muito menos.  Só viam uma solução. Só não viam, ainda, como implementá-la.

Vocês sabem, claro, que quem procura, acha. E a oportunidade caiu de presente em suas mãos. 

O diretor — que se considerava mais sedutor que Don Juan, mais bonito que o Hugh Jackman (mas era tão interessante quanto um pepino em conserva e tão sexy quanto injeção na testa) — resolveu, por artes do destino, convidar a dita professora para sair, com intenções inconfessáveis, mas explícitas. Era, além de tudo, o safardana, casado. Portanto, todo o encontro teve de ser minimamente planejado, para manter o segredo. Se a esposa soubesse, ele perderia a bocada do emprego de diretor. Foi, assim, em segredo ‘secretíssimo’, que ele e a professora saíram. Nem as sombras da noite os viram. 

Não havendo, portanto, testemunhas do encontro, ninguém viu o rohypnol fazer efeito no sujeito; ninguém presenciou seu assassinato (nem eu, por isso não tenho como entrar em detalhes); ninguém viu seu corpo ser levado ao laboratório, nem assistiu à inesquecível aula de dissecção aplicada ao dito cujo; ninguém viu seus restos mortais sendo corroídos pelo ácido. E, por fim, ninguém viu os cúmplices se esgueirando do prédio ao final da madrugada, exaustos. Exaustos, mas tranquilos — uns, porque iriam ganhar seus diplomas e estariam empregados ao término do semestre. Outra, porque continuaria a lecionar num curso de excelência, ao qual dedicara sua juventude, e não numa espelunca decadente gerenciada por um energúmeno.

Ninguém viu coisa alguma. Mas todos viram, na manhã seguinte, na sala de anatomia, o esqueleto fresquinho, novo, cintilante que os estava esperando para a aula do dia.

E ninguém perguntou de onde viera.

Comentários

Marcio disse…
Eu achei a crônica muito injusta com o diretor.
Pô, o cara deu a vida para salvar a escola, e é tratado dessa forma pela autora?
Pelo menos ele será eternizado no laboratório de anatomia (é esse mesmo o nome da disciplina?).
Carla Dias disse…
Zoraya! Me senti querendo assistir o filme Linha Mortal, mas descambando em uma minissérie baseada em obra de Stephen King. Muito bom!
Anônimo disse…
Imaginei um Vincent Price bem afetado no papel do diretor... ;)))
Erica disse…
Achei ótima! Ri muito... ninguém viu nada, né? Parece até um governo que conhecemos kkk
Rosana Ortega disse…
Irresistível. É ler o título e ficar com vontade de ler até o final. Obrigadíssima por mais esta entrega de criatividade bem escrita. Muito bem escrita!!!
Albir disse…
Involuntária, mas efetiva, a contribuição do diretor.
Clarisse Pacheco disse…
Ótima, Zô, adorei o "papalvo"-he,he!
É, Zoraya... não é fácil a vida dos seus personagens. :)
As chefias que se cuidem, estão sempre precisando de material de estudo por aí, esqueletos, cérebros ociosos, corações empedernidos, línguas ferinas...
sergio geia disse…
"Dentre os vários problemas apontados, dentre as diversas deficiências relatadas, a que mais se sobressaía, por risível e absurda, era a falta da peça principal do laboratório de anatomia: um morto". Depois de ler esta frase, Zoraya, já coloquei as minhas barbas de molho. Que delícia.
Zoraya disse…
Ahhh, Pessoal, que bom, obrigada!

Márcio - não se deixe enganar, o diretor não 'deu' nada. ao contrário, tanto tirou q acabaram lhe tirando a vida.

Carla - lembrar de Stephen King é mais um gentileza abusada sua!

Anônimo - gostei da ideia! tomara que algum caça=talentos me sugira isso kkk

Erica - pois é, nem me fale...

Rosana! - que delícia ver vc por aqui e com essas palavras mil gentis, valeu

Albir - kkk então, pelo menos no final ele foi útil, né? Contribuição efetiva e também definitiva

Clarisse - acho a palavra 'papalvo' engraçadíssima tb. Tava doida por uma oportunidade de usar

Sergio - oi, amigo, que bom que gostou. mas acho q vc nao corre risco nao, é mto querido

Ana - se o pessoal começa a imitar o grupo de alunos e a professora, nao vai sobrar um!

Eduardo - acho q nasci pra dificultar a vida dos meus personagens hahahahaha

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