UMA PRAÇA, UM HOMEM, UM JORNAL E O DESTINO
>> Zoraya Cesar
Há um homem sentado numa praça lendo um jornal.
A praça é suja e arenosa; pedaços esparsos de grama ressequida pareciam sujeiras não varridas, e os chafarizes estavam tão depredados que suas antigas formas estavam, agora, indistintas. Quem a visse jamais desconfiaria que, num passado não muito distante, ela fora famosa, lugar para crianças brincarem, velhos descansarem, amantes e enamorados trocarem juras de amor eterno.
Apenas os bancos de ferro, indiferentes à deterioração que um dia atinge a todos os seres e coisas, permaneciam tais quais eram. Aquele, no qual estava sentado o homem que lia o jornal, tinha pés em formato de garras, que lhe davam um aspecto de força e perenidade. Um banco sem frescuras ou tremeliques, feito para durar além do tempo dos homens. Não como esses bancos de madeira, desprezíveis em sua decomposição. Não. Um banco sólido e confiável, capaz de presenciar acontecimentos sem deles dizer palavra.
O local, outrora freqüentado por famílias, há muito estava abandonado, tendo se tornado ermo e perigoso. De vez em quando, drogados ou vagabundos apareciam, mas apenas nas primeiras horas da noite — o sol e a falta de abrigo ou sombra tornavam tudo muito desnudo e devassado para quem preferia a escuridão e o segredo.
O homem que lia um jornal, sentado no banco daquela praça, estava, portanto, sozinho, àquela hora do lusco-fusco, em que as pessoas de bem estavam se recolhendo à segurança de seus lares, e as de não tão bem ainda não haviam saído de suas tocas. Sozinho estava, excetuando as almas dos mortos, mas as almas dos mortos não contam. Mesmo estando presentes.
O homem sentado no banco daquela praça abandonada era velho, indubitavelmente velho. As roupas não eram novas, mas estavam em bom estado, desmentindo o aspecto de desleixo que lhe davam os cabelos e a barba branco-encardidos. Sentava-se ereto e rígido. Por trás dos óculos, estreitos olhos, de um azul líquido, brilhavam uma luz sinistra e satisfeita. As mãos, grandes e poderosas, terminavam em dedos grossos e nodosos, cobertos por manchas senis. Mãos violentas. Que, no entanto, seguravam o jornal com delicadeza de ourives.
Há muitos anos, sempre naquela data, não importando eventuais intempéries, doenças, circunstâncias quaisquer, ele vinha à praça, sentava-se no mesmo banco e punha-se a ler aquela mesma notícia no jornal, incontáveis vezes, sempre com o mesmo prazer, aquele mesmo meio-sorriso fino e cruel. À medida que a violência crescia na região, tornando-a cada vez mais inóspita, ele passou a chegar e a sair mais cedo. Não naquele dia, porém.
Fazia 25 anos do ocorrido, e, de tão emocionado, perdeu-se nas memórias do tempo e deixou-se ficar entardecer adentro, lendo, lendo, lendo.
Uma foto ilustrava a matéria, a de uma jovem quase bonita, de pele muito branca e cabelos curtos e pretos. Seus lábios protuberantes sorriam, largos, parecendo dizer “faço o que quero dos homens e gosto do perigo". Uma boca sensual e desaforada. Abaixo, a legenda: “Marilice de Abreu, estrangulada no banco da praça X...” . A mesma praça e o mesmo banco onde sentava o homem de olhos líquidos. O assassino nunca fora encontrado.
O homem sorriu e apertou as poderosas mãos, sentindo ainda a resistência do pescoço de Marilice, o último estertor, o lento desfalecer de seu corpo inerte — estranho, pensou, como a ausência de vida deixa o corpo mais pesado, ao invés de mais leve. Sentiu ainda a leveza do tecido do vestido ao deitá-la cuidadosamente no banco. Marilice podia ser desabusada, mas era muito elegante; só porque ousara traí-lo e abandoná-lo, não merecia ser largada de qualquer jeito.
Sorvia o frisson da vingança e a tranquilidade dos impunes, quando sentiu uma dor aguda e ardente no pescoço, por onde o sangue esguichava, um jato de vida colorindo a paisagem árida.
O vagabundo que o esfaqueara praguejou, ao ver a roupa que cobiçara manchada de sangue. Agachou-se em frente ao corpo quase exangue do velho assassino, roubou-lhe os sapatos e as meias. Ainda tentou pegar, também, o jornal, mas a mão do velho, num último espasmo, segurou firmemente o papel. Que se dane, pensou o vagabundo, afastando-se de volta para seu submundo.
A última coisa que o homem sentado no banco da praça viu foi a boca descarada de Marilice, pintada de vermelho-seu-sangue, sorrindo para ele.
Comentários
Antonio
e eu que esperava algo levinho, tipo paixão tardia... sempre surpreendendo!