LUGARES INTERIORES >> Carla Dias >>


Amanhece com o dia ainda no prefácio. Gosta de recebê-lo com olhar a se perder em horizonte. Não é de longas noites de bom sono, mas de poucas horas de olhos fechados e raros momentos de silêncio, quando seus pensamentos se acalmam, assim como sua respiração, e ele consegue se misturar ao silêncio da madrugada.

Ano passado, perdeu emprego e esposa, nessa ordem mesmo. Era bom no que fazia... Não, era ótimo no que fazia. Era tão ótimo que chegou o dia em que aquilo já não fazia mais sentido e não havia como seguir adiante. Não havia promoção, plano de carreira ou o que fosse que acenasse com o próximo passo. E para ele o próximo passo era necessário. Aos poucos, toda excitação de ser quem era foi se esvaecendo. Tudo foi ficando fácil, mas de um jeito tirano.

A esposa, que lhe acompanhara durante longos e aventureiros quinze anos, sentiu essa onda de esmaecimento e se aborreceu profundamente. Para ela a vida ainda reservava uma série de próximos passos. O seguinte ela deu na companhia de um amigo da época de escola. Quando partiu, nem disse adeus, de tão desapontada com o ex-marido, aquele que lhe prometeu uma vida de aventuras e a confinou em um cenário de confusão e abatimento.

Ele não pediu que ela ficasse. Não suplicou para que ela o ajudasse a voltar ao mundo. Silenciou, fumou um cigarro, bebeu uma bebida, gastou alguns dinheiros com banalidades. Fez a partilha, deixando para ela quase tudo o que conquistara ao seu lado.

O quase faz diferença. Ele ficou com esse apartamento em décimo quinto andar, prédio antigo e de cômodos grandes. Tem onde morar, a aposentadoria lhe custeia o resto, que nunca foi de consumir muita comida ou desperdiçar água, luz e telefone. Ainda bem que foi bom, mas ótimo no que fazia, chegando ao último lugar onde caberia um expert feito ele, o que lhe garantiu uma aposentadoria que é para poucos.

Não é jovem, seu corpo já reclama o resultado de uma vida debruçada em longos turnos de trabalho, uísque, energético e um rico histórico de excessos. Sua irmã, na última aparição no apartamento, disse que ele parece melhor do que antes, quando as pessoas o idolatravam. Ele correspondeu à declaração dela com um sorriso e a alegação de que achava o mesmo. A solidão me cai bem. Mas a irmã entendeu a solidão dele de um jeito diferente de como ele a sentia. Caiu no choro, perguntando se ela poderia ajudá-lo de alguma forma, que ela faria de um tudo para vê-lo feliz. Ele levou horas para acalmá-la.

Ele não entende o motivo de a maioria das pessoas ignorarem a importância da solidão. Não que elas tenham de levar uma vida reclusa e infeliz. Mas acontece de sobrar a alguns somente a solidão, mesmo quando parece que todos a sua volta existam para lhes fazer companhia e servi-los.

Gasta o dia com o que mais gosta: livros e música. Até arrisca uns passos de dança no meio da sala. Não precisa de mais do que isso para que as horas não se arrastem. Porém, ele tem se sentido animado a respeito de sua nova paixão. Nessa sua solidão – nomeada pelo psiquiatra que sua irmã fez com que consultasse como depressão -, descobriu-se um ótimo escutador de histórias.

O apartamento onde mora, do qual é proprietário, é o mesmo de sua infância. Ali viveu até a adolescência. Ali seus pais viveram até falecerem. Não quis se desfazer do lugar, então o alugou e se esqueceu dele. Durante a divisão de bens, redescobriu esse lugar – na geografia e na alma – e decidiu que era ali que viveria. Esperou alguns meses, até que o contrato de locação do inquilino vencesse, e pediu o apartamento de volta. Mudou-se para lá no dia seguinte da saída dos moradores.

Quando chegou ao apartamento, caminhou lentamente pelos cômodos a colher lembranças. Lembrou-se do som das vozes de sua mãe e de seu pai, das traquinagens de sua irmã, das horas que passavam juntos na sala, as crianças a brincarem e os pais a conversarem sobre tudo. Ele gostava de escutá-los, de observá-los. Se há uma coisa divina que tem certeza que lhe aconteceu, trata-se de ter nascido filhos dos seus pais.

Acomodou-se no quarto principal, mas foi no seu antigo quarto que encontrou o que o zelador disse que o inquilino não quis levar embora, pódexá que eu resolvo isso e tiro tudo de lá até segunda. Acontece que, antes da segunda, ele já estava encantado com aquilo tudo. O menino que foi pensou logo: parece até que, se eu me esforçar, vou chegar à lua.

Nunca foi habilidoso em escutar as histórias pessoais daqueles com quem tinha de lidar, o que, na verdade, o levou a chegar tão longe no trabalho. Agora, radioamador, é escutador notívago. Já escutou a história de tantas pessoas, que a sua percepção sobre o mundo mudou, assim como sua compreensão sobre a solidão. Pode até não conseguir explicar à irmã que ela não precisa se sentir triste por ele, tampouco refutar o psiquiatra que acredita que o remédio não está surtindo o efeito desejado. Talvez, dia desses, ele traga a irmã ao seu quarto de menino para lhe mostrar seu equipamento e apresentar as vozes que o acompanham durante a noite. Talvez, dia desses, convide alguns dos donos dessas vozes para jantar.

O que importa é que ele recobrou o direito ao seguinte. O passo e o próximo. O outro, o semelhante. Pois não há nada que represente melhor a solidão brutal do que chegar ao momento em que não se tem mais aonde ir.

Imagem ©  freeimages.com | Richard Dudley

Comentários

Zoraya disse…
"Amanhece com o dia ainda no prefácio". Vou começar a colecionar essas frases de lindo efeito, Carla!
Senti amor por esse seu personagem, Carla. :)
Carla Dias disse…
Zoraya... Sinta-se à vontade :)

Eduardo... Obrigada por tal oferenda!

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