MATILDA >> Zoraya Cesar

Não havia casal mais amoroso, isso era certo. Não obstante o fato de ele ser 38 anos mais novo que os 64 de Matilda.

No início, todos os conhecidos dela – e, porque não dizer, os de Edu também – pensaram tratar-se do velho, mas sempre atual, golpe do baú. E por que assim não creriam? Se não, vejamos: ela, enfermeira aposentada pelo serviço público, sem parentes ou aderentes que pudessem, de alguma forma, herdar seus bens. Que não eram muitos, mas eram sólidos. Um apartamento bem localizado, um carro ano 2000 e uma poupança razoável. Era gordota e flácida, vestia-se com um mau gosto atroz e - não sejamos bondosos ou hipócritas - era feia e mal ajambrada. Parecia um pequeno espantalho. Ele, por sua vez, era bonito, alourado e musculoso - mas pobre e suburbano -, recém-formado em Educação Física, por uma dessas faculdades que o MEC nem sabe que existe; a academia, na qual trabalhava o dia inteiro, era pequena, se o professor não desse a sorte de ser contratado como personal trainer, corria o risco de morrer de fome.

Se o destino de Matilda parecia ser o de morrer virgem, e o de Edu, o de morrer de fome, mais uma vez comprova-se que as aparências enganam. Ela o contratou como seu treinador particular, e, em poucos meses, passaram da cadeira flexora à cama. Dela, naturalmente, que Edu morava longe e mal. O escândalo foi geral. Afinal a diferença de idade era gritante e indecente. Estava claro que o jovem forte e bonitão queria vida mansa ao lado da feiosa e, obviamente, ingênua, solteirona. 

O fato, porém, era que os dois estavam sempre juntos, de mãos dadas, no cinema, na praia, nas curtas viagens e passeios – que o dinheiro de Matilda era curto, e de Edu, quase inexistente. Faziam tudo o que um casal menos desusado faz. Sexo, inclusive. Perguntavam-se, os maldosos, se Edu realmente amava Matilda, ou não passava de um ganhoso. Mas não prestemos atenção aos maldosos, pois eles não herdarão a terra. Melhor viver e deixar viver. De preferência, bem. Amando ou somente movido pela cupidez, Edu provia a esposa de  carinho, cama, companhia. 

Esposa, eu disse? Esposa, confirmo. Depois de um ano juntos, resolveram se casar, um sonho tão velho quanto eu, brincava Matilda. 

Casaram-se, pois, ele, de fraque; ela, de véu e grinalda. Passaram a lua-de-mel no Caribe – uma viagem paga em 10 vezes sem juros -, nadando, pescando, mergulhando. A essas alturas, o pessoal desistiu de insistir que ele era um golpista e ela, uma otária. Aceitaram que era amor, encontro de almas, espíritos evoluídos, destinos cármicos. E a vida seguiu.

A vida seguiu, e, atrás dela, a morte, que é o curso natural das coisas desde que o mundo é mundo e assim continuará sendo, mesmo quando o mundo, tal qual o conhecemos, deixar de existir.

Engasgando com as lágrimas, sacudindo-se toda, Matilda ameaçava jogar-se no mesmo buraco onde Edu passaria o resto de sua não-vida. Seu jovem, atlético, saudável marido morrera de repente, num ataque fulminante ocorrido na madrugada. 

Ela se declarava culpada, pois costumava tomar soníferos, não fosse isso, gritava, poderia ter salvo a vida do seu amado. Os presentes a consolavam, imagina, diziam, quando a hora chega, chega para todos, nada a se fazer... As platitudes de sempre.

Quando a última pá de terra cobriu o último vislumbre de caixão, Matilda deu o último adeus e foi embora para casa. 

Chegou, ajoelhou-se e pegou uma garrafa embaixo do armário. Serviu-se de uma generosa dose de Glenlivet, seu uísque preferido, único luxo ao qual se permitia. Tomou um, dois, três goles com os olhos fechados, enlevada.  

Nunca mais precisaria beber escondida. Nem mexer em sua poupança, a cada ano mais magra. Não mais teria de contar trocados ao final do mês. Ou aturar a conversa chata e desinteressante daquele moleque ignorante, que só servia mesmo para o sexo. Se bem que ele fora um ótimo investimento. Ela tomou mais um gole, prolongado, quente, perfumado. E congratulou-se, feliz.

Pois fora tão fácil seduzi-lo com a possibilidade de que, pela idade, morreria logo, deixando tudo para ele. Matilda, velha de guerra, jamais acreditou que um jovem de 26 anos se apaixonaria por seu corpo mole, suas varizes, seu rosto caído. Ela apenas fingiu não perceber o Viagra escondido na gaveta; as trocas de mensagens com uma aluna, morena e jovem e sexy; o ligeiro desdém com que ele a olhava quando estavam sós. Tudo muito discreto, claro, ambos cúmplices tácitos no jogo do eu te amo, eu te amo também. 

Convenceu-o a fazerem, ambos, um polpudo seguro de vida, pelo qual, em caso de morte, o cônjuge sobrevivente receberia uma pequena fortuna. E como, segundo o curso natural da vida, Matilda morreria antes, Edu assinou o contrato, sem ler duas vezes. Aliás, não leu nem uma, que dirá duas.

Escolhera o Caribe como destino da lua-de-mel com o propósito de conseguir veneno de baiacu. Na noite fatídica, trocou o suplemento vitamínico de Edu pelo mesmo sonífero que ela fingia tomar todas as noites. Enfermeira com doutorado em Química, manipulou o veneno e injetou-o no marido inerte. Que morreu sem saber o que acontecia.

Matilda terminou sua bebida e pegou os classificados. Estava mais que na hora de comprar um carro novo.

Comentários

Anônimo disse…
MATILDA, sua safada!!!!! hahaha
Marcio disse…
Cadê o Felipe Espada numa hora dessas? A seguradora vai pagar a apólice sem nem mesmo requerer uma autópsia? Assim fica fácil demais!
Jorge disse…
Oi Zoraya, defunto novamente (e o pior é que muitas mulheres vão chorar a falta de mais um garotão na pista, hahaha...), assim não dá!

Beijos.
Anônimo disse…
Hahahahaha, adorei! confesso que achei que não terminaria hoje... Zoraya sempre surpreendendo!
Cris
pobre coitado da próxima vítima, porque duvido que Matilda pare por aí!
aretuza disse…
como é que cantava o Harry Belafonte?
"Hey! Matilda, Matilda, Matilda, she take me money and run Venezuela.
Once again now!"
espero que o Felipe Espada entre nessa história!!!
Anônimo disse…
Surpreendente!
Irislene Santos disse…
Ela foi mais esperta que ele, dando o golpe antes dele.Estou surpresa!
Albir disse…
Vou gostar se você fizer Matilda enterrar mais uns três, sempre acima de qualquer suspeita.

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