O CONTRATO - PARTE II >> Zoraya Cesar


Tudo por uma boa causa. Engoliu o medo, a ansiedade, a insanidade que era aquela coisa toda, e seguiu na direção apontada pela exótica bartender.

O homem se levantou para ela, surpreendendo-a. Não estava mais acostumada com esse gesto. Ao sentar-se, reparou que as luminárias haviam sido estrategicamente colocadas de forma a impedir que o semblante dele fosse visto com clareza. 

Sem problemas, pensou ela, os olhos não são as janelas da alma, os olhos mentem tanto quanto a boca, disso ela sabia muito bem. São as mãos que revelam os segredos da alma.

As mãos. Grandes, mas não muito, quadradas, de unhas cortadas rente e – oh, Graças a Deus – sem esmalte. A pele parecia ressecada, como um deserto cheio de cactos, e os nós dos dedos tinham aquela deformidade típica dos praticantes de karatê. Quem quebra tijolos, pensou ela, quebra também ossos.   É por isso que estou aqui. 

- Me apaixonei por um sujeito, e ficamos um tempo juntos, eu o sustentei durante esse tempo. Quando descobri que ele não passava de um cretino, dei-lhe o fora. Acontece que ele filmou nossas transas, sem minha permissão, claro, e há meses me chantageia. Sou assistente de um candidato a governador, se isso vem a público serei demitida e nunca mais arranjo emprego na minha área. Estou endividada, ele quer me extorquir até o desespero. Não posso procurar a polícia. Contratei um detetive particular, mas não deu em nada, o cara é um filho da p**, mas é esperto. Ele disse ao meu advogado que queria uma mesada, pelo tempo que passamos juntos. Dá pra acreditar? Prefiro morrer a continuar sustentando vagabundo. Minhas reservas estão se esvaindo e minhas forças também.... E se ele divulgar os filmes, eu...

Ela se calou, cansada, visivelmente nervosa, mas ainda assim não chorou. Uma forte, pensou ele. Em situações normais deve até ser bonita, sem as olheiras, a boca apertada, a pele baça. O desespero destrói uma pessoa. 

- E o que você quer? – a voz dele era suave e gentil, contrastando com sua compleição atlética.

- Que ele me deixe em paz. Pra sempre. Antes que eu faça uma besteira eu mesma. Ou mato ele ou me mato, estou ficando sem saída. Tenho um filho de oito anos, estou tomando calmante pra dormir, logo eu, que nao tomo remédio nem pra dor de cabeça.

O homem permaneceu em silêncio por um longo tempo, sem que ela o interrompesse. Gostou disso, demonstra segurança e caráter, pensou. Observou-a, com olhos semicerrados, enquanto ela permanecia imóvel, olhando fixamente para um ponto qualquer acima da cabeça dele. 

Ele jamais aceitara um encontro sem antes investigar a vida do pretenso contratante. Aceitar o contrato era outra etapa. A experiência de anos no ramo lhe ensinou que pessoas comuns, como a mulher à sua frente, jamais deveriam se meter nesse tipo de coisa, contratar gente como ele, nunca dava certo.  O desespero voltava, dessa vez por outra porta, e o medo passava a consumi-las por outros caminhos. Nem todos suportavam o preço a pagar pela liberdade. E, em algum momento, eles acabavam contando para alguém, e isso também não era bom. 

A polícia sabia da existência do Clube, mas nunca chegara perto de seus sócios, por três motivos muito simples: os órgãos oficiais às vezes precisavam de seus préstimos; alguns dos membros pertenciam aos altos escalões da sociedade; e porque eles eram muito cuidadosos. Profissionais.

Ele também sabia que chantagistas daquele nível eram vingativos e escorregadios, não desistiam até verem suas vítimas exangues. Pessoas comuns não tinham defesa contra eles, sangravam até a morte. E morte era a sua especialidade.

- Você tem certeza? Uma vez contratado o serviço, não tem como voltar atrás. E tudo nessa vida, assim como na outra, tem conseqüências. – ele falou, baixo e firme. Ela hesitou.

- Levei meses pra chegar até aqui, fiz o que podia e o que não devia. Mas agora... não sei. Só não posso continuar assim. Não tenho mais a quem recorrer...

Alguém diminuíra o volume da juke box, fazendo a música do Def Leppard mais parecer com Bossa Nova, e aumentara o da televisão; alguns frequentadores prestavam atenção à partida.

- Não acho que você queira realmente isso, não vai aguentar uma morte na consciência. Tenho um amigo hacker que conseguirá apagar todo o conteúdo do computador do seu ex, que não terá mais como te chantagear. Mas digamos que ele tenha os filmes em outras mídias, e, de qualquer maneira, sempre será uma preocupação na sua vida.  Então, eu proponho o seguinte: se o Brasil fizer um gol agora, providencio para que ele nunca mais seja um problema para você. Se o Brasil levar um gol, providencio para que ele nunca mais seja um problema para ninguém. Você jamais saberá como aconteceu. E aceita jantar comigo hoje, sem me ver nunca mais, se não quiser. O que acha?

Ele se inclinou sobre a mesa, deixando-a ver seus olhos castanhos enfeitados por pequenas rugas, os cabelos grisalhos, o sorriso perfeito, estranhamente confortador. Tudo o que ela queria era se ver livre pra sempre do desgraçado, mas matar seria realmente o último ato de desespero. Matar ou morrer, que seja por uma boa causa, sempre acreditara nisso. O cretino era fanático por futebol, por que não deixar o futebol decidir o destino dele, perguntou-se; o homem à sua frente pertencia a um clube de assassinos de elite, e a estava convidando pra jantar... Que mundo estranho, esse.

Ela tomou sua decisão, sabendo que, desistindo ou prosseguindo, teria de arcar com as consequências. Abriu a boca, mas, antes que pudesse responder, o locutor grita: 

- Goooll d...

Comentários

Rolim disse…
Adoro vc Zoraia! Como sempre D+! Elida
Marcio Figueira disse…
Acabou ou vai para a prorrogação e os pênaltis? Estou ansioso por mais...
Anônimo disse…
Gooooollll da Alemanha!

Goooooollll da Alemanha!!

Goooooollll da Alemanha!!!

/.../
Erica disse…
Agora só falta ela se livrar do ex e arranjar outro chantagista pra vida dela... Tem gente que não aprende rsrs
Anônimo disse…
Ela vai se livrar do ex? Eles vão se apaixonar? Vai ter parte 3?
aretuza disse…
bom, agora a parte 3, né? pelo amor de deus!
no melhor estilo Humphrey Bogart e Lauren Macall dos anos 2000...

se foi no jogo da alemanha, o dito tá cujo tá morto e enterrado pelas próximas sete vidas...

aguardando, Zô, que outro jeito, né?

beijo!

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