CAIR NO MUNDO >> Carla Dias >>


Mãe disse a ela, disse de fazê-la encasquetar com o dito, em uma constância que envolveu anos de sua vida, entre o almoço e o jantar, às vezes, antes do café. Enquanto fazia lição de casa, durante sua festa de aniversário, quando ela estava sozinha, quando estava acompanhada, quando estava de mudança. Com carinho, impaciência. Aos berros, aos prantos. Mãe disse a ela: cuidado, menina, que a vida aflora infortúnios com mais frequência do que lhe empresta sorrisos.

Educada essa moça, que estudou direitinho, arranjou um bom emprego, paga suas contas, ela até arca com as consequências de todas as suas escolhas. Tem medo nenhuma delas. Aos domingos, é ela quem puxa a reza, antes do almoço. Depois, é ela quem coloca a casa em ordem, prepara o café da tarde. Senta-se na sala com seus pais e dois irmãos, observando-os detidamente, enquanto assistem ao programa de auditório preferido e com horas de duração. Às cinco em ponto, ela se levanta e anuncia a partida, recebendo acenos longínquos e desinteressados, olhos deles seduzidos pela programação da tevê. Voz dela avisando que precisa de dinheiro para comprar a comida do próximo domingo. A moça, educada que só, deixa o dinheiro sobre a mesa e sai.

Caminha para casa, que gosta de gastar tempo vendo a vida acontecendo aos outros, no entorno de si. Quarenta e dois minutos depois, ela abre a porta de seu apartamento. Bolsa sobre a cadeira, casaco pendurado atrás da porta. Controle remoto: música. Pés descalços e a necessidade urgente de um gole de vinho. Escancara as janelas, sala, quarto e cozinha. A cidade se insinua ao olhar curioso da moça, que tenta evitar o delírio, mas é rendida pelo pensamento. Que não lhe atrai somente o ritmo com que ele diz as palavras, mas também o que é manifestado por meio delas. E por mais que tente evitar, seu corpo corresponde a esse gostar, e a zonzeira não é mais somente pelo vinho.

Telefone toca e ela, na embriaguez de moça bem educada, invadida pelo desejo pelo improvável, atende já sabendo quem. É apenas para lhe dar um lembrete, deixa claro, a vida faz isso e aquilo e sempre dá errado. Mas não o dinheiro para o almoço do próximo domingo. Esse tem de estar certinho, não pode faltar centavo que seja. A moça se desculpa com a mãe, que não deve ter contado direito, mas amanhã depositará na conta dela o que falta e mais um pouco. Antes de desligar, a mãe insiste, repete, reverbera que ela, a moça bem educada, vale menos do que pensa. E que a vida, essa meretriz que adora se esbaldar no tormento das pessoas, há de curvá-la até que ela, desprovida da capacidade de ser a pessoa que deseja ser, terá de se mostrar, todos os defeitos em destaque.

Desliga o telefone. Serve-se de mais vinho, aumenta a música, observa a cidade, já de um jeito enevoado. Pensa que, se a vida fosse como a mãe vem jurando que é, desde sempre, talvez fosse hora de ela dar o veredito, que preparada para os seus desmandos a moça já está. Educada que foi sobre os despautérios da vida, sente-se pronta para render-se ao seu destino. Que se ela não vale o esforço da vida para lhe ensinar o aprazimento, melhor que a moça possa encarar de vez os seus abismos. O ponto de espera é o que a deixa em agonia.

Segunda-feira é sempre dia complicado. A moça, ainda meio azoinada devido à garrafa de vinho esvaziada na noite anterior, tenta executar as tarefas com o profissionalismo de sempre. Então, a colega de trabalho vem lhe fazer uma visita, com a usual caneca com café fresco. Senta-se defronte à moça, do outro lado da escrivaninha, e com a acidez de sempre, começa a contar as fofocas do trabalho. A moça sorri, vez ou outra, quando a notícia tem certa graça. Mas quando a outra, claramente chocada, conta que ele, o moço das palavras que a embevecem feito vinho, mudou-se de repente, sem deixar endereço, telefone, nem mesmo esperou para receber o que lhe cabe, assim, fugido mesmo, a moça sente como se tivessem lhe esvaziado.

Bolsa na cadeira, casaco atrás da porta. Senta-se no sofá, a escuridão presente. Passa horas remoendo a perda, que lhe pesa feito a morte de ente querido, que o moço era a única pessoa a quem tinha apreço, que despertou nela muitos desejos, principalmente o de acreditar, que ao contrário do que fora educada para aceitar, a vida, em dias de deslumbramento, oferecia a cortesia da felicidade.

Terça-feira cedinho, telefone toca. A secretária atende e a voz dela se alastra estridente pelo apartamento. Mãe quer saber por que o depósito não foi feito, que onde já se viu a moça colocar em risco o almoço de domingo. Isso não é coisa que filha faça para mãe, sabe?

A mãe diz, repete mais uma vez, e suas palavras ecoam pelo apartamento vazio. A colega de trabalho escolheu pensar que a moça, tomada pela necessidade pungente de experimentar da felicidade, partiu por gosto, escolha. A mãe, depois de reclamar que a ingrata da filha não poderia fazer isso com ela ao policial que atendeu a ocorrência de desaparecimento, respirou fundo, agoniada que está por não saber como fará para pagar as contas.

A vida, por sua vez, manifestou-se. Não do jeito que a mãe prometeu que seria. Não como a colega jurou que aconteceria. E a moça, despida de medos herdados, caiu no mundo, que deseja descobrir o que a vida é para ela, assim, na lida. Vivendo.

Imagem: sxc.hu

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