VIOLA DA GAMBA, LITERATURA E VIOLONCELO
>> Carla Dias >>

The Quintet © Otto Piltz

A pesquisa, com o fim de escrever um livro, é algo que faço somente quando definitivamente necessário. Depois que embarco nessa jornada, não há como fugir da pesquisa. É preciso saber se aquele dito popular, que você escutou, durante a infância toda, que decidiu incluir nessa história inventada, é originalmente como lhe disseram. Às vezes, uma palavra que os seus avós pronunciavam de um jeito, não era bem assim, mas você fixou, então tem de reciclar, colocar a palavra em ordem. Mesmo depois de descobrir o dicionário, às vezes me espanto com a lembrança de alguma palavra que aprendi na infância, e que, adulta, descubro que o seu sentido estava correto, mas não a sua grafia.

Obviamente, eu falo sobre uma época em que a informação não era amplamente disponível como hoje. De quando até mesmo o professor mandava a rua brilhar, em vez de ladrilhar; que vaiar Roma fazia muito mais sentido do que a ideia de ir até ela. Nos dias de hoje, a pesquisa ficou mais rápida, apesar de ainda exigir discernimento do pesquisador, para que não caia nas arapucas daqueles que oferecem informações incorretas. Como sempre, a fonte é tudo e mais um pouco.

Meus textos são, na sua maioria, sobre pessoas e suas percepções sobre a vida, e algum ponto de virada que deixa tudo às avessas. Não é por escolha, mas porque assim acontece quando escrevo um livro. Raramente, a pesquisa é mais necessária do que o mergulho interior. Porém, às vezes eu me atrevo a incluir informações no tal sobre o que não conheço muito bem, como ando fazendo no livro que venho tentando finalizar já há algumas semanas, que está mesmo no final, mas que ando protelando, porque dizer adeus aos personagens é sofrível. Mas chegarei lá.

No livro, a personagem principal é apaixonada por arte, principalmente música e literatura. Até aí, tudo bem, eu também sou. Mas essa figura, acostumada a viagens interiores que lhe despertam uma realidade alternativa, é uma pessoa que sabe aproveitar esse conhecimento de um jeito muito mais amplo. Ela tentou aprender a tocar um instrumento, estudou muitos deles, mas sem que surtisse efeito. Tentou cantar, mas desafinada que é, também desandou nessa tarefa. Até o momento em que descobriu que era, antes de tudo, uma ótima escutadora de música, e que assim vinha alimentando o espírito, desde criança, incutindo trilha sonora a sua existência.


O violoncelo é o instrumento musical que apresentou a essa personagem a paixão pela música. A a minha curiosidade sobre ele veio de um belíssimo filme francês, que eu assisti há muitos anos. Todas as manhãs do mundo (Tous les Matins du Monde/1991) conta a história de um talentoso músico que toca viola da gamba, um primo do violoncelo, e que ao voltar para casa, após uma viagem, descobre que sua esposa está morta. A partir daí, ele não sai mais de casa, dedicando-se somente à música e às suas filhas. A beleza de sua música se torna assunto em pauta, sendo convidado até mesmo para fazer parte da orquestra da corte de Luiz XIV, mas ele não aceita o convite. O filme é de uma delicadeza ímpar, um poema.

Pesquisando a viola da gamba, apaixonei-me pelo violoncelo, mas de jeito tímido, ainda que Jaques Morelenbaum já fosse dono da minha admiração. Essa querença ficou na minha alma, quietinha, até eu ter de escolher um instrumento pelo qual a personagem se apaixonasse e que não tivesse habilidade nenhuma de aprender a tocar, o que a levou a se tornar uma ouvinte atenta, coração e mente sempre abertos à música criada e executada com esse instrumento. Ao fazê-lo, conversei com uma amiga violoncelista, que me indicou quem eu deveria escutar. Em meio a essa pesquisa, conheci Adam Hurst, um músico e compositor que, como consta em sua biografia, no seu site, usa seu instrumento como uma voz melódica para criar apaixonada e emotiva poesia musical que fala à alma. Confere.

Só que não bastou essa paixão pelo violoncelo que, desde Adam Hurst, vem sendo a trilha sonora que me permite acessar emoções mais profundas. Eu tive de incluir na história um personagem dual, um violoncelista muito famoso, que se torna amigo e confidente dessa personagem, e que chega a acordá-la tocando, uma metáfora para um despertar muito menos agradável. Mas a música é somente um amparo para a personagem, não a sua história completa. É uma ferramenta para que ela acesse lembranças que escolheu mudar para ser capaz de aceitar determinadas situações.

Diverti-me pesquisando para esse livro, conhecendo músicos e instrumentos. Confesso que pouco entrou na história, mas muito invadiu a minha alma. E se fala diretamente à alma, quem sou eu para não escutar e aprender com o dito?



"Levanta-se e sai do quarto, abandonando-me ao silêncio no recinto e à algazarra das inquietações interiores. Entretanto, volta em seguida, o violoncelo como companhia. Senta-se na cadeira, a janela de fundo. Apruma-se, assumindo a intimidade com o instrumento, mostrando que entre eles há sintonia como raramente há entre as pessoas. Ordena-me, resoluto feito educador austero, que me deite, feche os olhos, permita-me levar. Para mim, nada nesse dia tem feito sentido ou me permito contradizê-lo. Sendo assim, acato a ordem dele e me deito, puxando o lençol até cobrir o nariz. Os olhos eu mantenho focalizados nesse homem que decidiu, sem a minha permissão, colocar seu plano em prática. Ele começa a tocar, a música deslumbrando os meus pensamentos. Então, compreendo que o plano dele, desde o início, era me aquietar a alma." Carla Dias, trecho do livro Aquela que chegou depois, em fase de conclusão.

Comentários

Zoraya disse…
ai, já to ansiosa pra ler tudo.
Muito bom saber mais de seu processo criativo. ;)
Carla Dias disse…
Zoraya... Livro finalizado, em fase de revisão. Depois te mando em pdf, que publicar sei não se acontece. Beijo!

Eduardo... Neste caso, foi mais como um descabelamento criativo :)

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