FASCINAR-SE É PRECISO >> Carla Dias >>

Com que clareza verbaliza delícias, com palavras dedicadas ao auxílio necessário à realidade, para incrementá-la com o fantástico de experimentar fascínios. Fascinar-se é coisa séria, por vezes difícil, delicada no sentido que nos faz temer a incapacidade de realizar essa busca efêmera. Porque o fascínio, quase sempre, chega e passa com a velocidade de uma noite bem dormida. Porém, quando se estende para a eternidade daquilo pelo qual nos apaixonamos, bem, o fascínio ultrapassa a duração e se eterniza na gente.

Como o meu fascinar, que é de moça despreocupada com o zelo emocional, que sai sentindo sem pedir permissão a si mesma, dando pouca importância ao quanto pode doer o próximo tombo. A julgar pela facilidade do meu sentir, diria o poeta do bairro, a empunhar copo americano cheio de destilado, lá no boteco da esquina, que sou uma devassa emocional, uma meretriz desavergonhada e de unhas cravadas no sentimento. E por meio da poesia do poeta bêbado, meus sentimentos se tornariam embaraços, pecados, delícias submersas por falseado pudor.

Porém, aqui estou. Trabalhando no meu emprego desde sempre, fabricando artesanalmente e vendendo velas pelas ruas da cidade, acreditando completamente que há importância na minha labuta. Porque o religioso necessita da iluminação para espiar os seus pecados, algumas donas de casa, depois de esquecerem ou não poderem pagar as contas de luz, precisam alumiar a casa, antes de colocarem os seus rebentos na cama. O intelectual, decidido a levar uma vida humilde que lhe ensine a ser rico por dentro, precisa das velas para ler seus livros, rabiscar seus pensamentos.

Apesar da luxuriosa vida emocional que levo - porque sinto tudo de jeito aumentado, amo e odeio com a força dos que vivem dos temporais -, o que procuro achei onde não devia. Só que me fascinei e depois de feito não há quem ou que desate esse nó. Eu me esparramo na vida, mergulho no sentimento e me permito experimentar, sem zelo, o tudo do quase nada que recebo. E só porque me chamou de “aquela que traz a luz”, roubando a minha atenção. Porque assim me ofereceu a iluminação que não cabe às pessoas que nasceram para o quase nada, feito eu, a contraventora que não engoliu o destino que a escolheu e se atreveu a fascinar.

Minha mãe sempre maldisse o amor. Cresci aprendendo o quanto esse sentimento fragiliza, imbeciliza, aprisiona. A missão dela se tornou desacreditar o sentimento, enquanto se afundava em um, só que dos que não oferecem alegrias, em meio aos desapontamentos. A mágoa toda era por ter sido abandonada, e mulher abandonada, isso aprendi sozinha, pode ser cruel com aqueles que querem amá-la e principalmente consigo mesma. A amargura de minha mãe, ao contrário do que ela insistia em me fazer aceitar, só fez crescer em mim a necessidade de me fascinar. Só fez moldar o meu espírito para aceitar o pouco oferecido e não renegá-lo.

Sou o projeto de minha mãe que deu errado.

Eu já me fascinei de tantas formas, e tantas vezes, que a cartomante, na última leitura que fez para mim e que me custou cinco velas, mostrou-se preocupada comigo, porque “exagero, moça, essa coisa de fascinar tão fácil é malandrice do coração, cuidado!”.

Contei ao poeta de boteco sobre a leitura da cartomante, e por duas velas, ele fez um poema para mim sobre meu coração malandro, minha ousadia emocional, minha fascinação atual. O dono do boteco, violonista autodidata, sentou-se conosco à mesa, empunhou seu violão e musicou o poema. Em algumas horas, minha fascinação se tornou canção. E enquanto a garçonete cantava as palavras do poeta e se embrenhava na música do dono do boteco, meus olhos continuavam acampados naquela vista.

Do outro lado da rua, pela janela da casa simples, eu o observo sentado de frente à bancada, as mãos se movendo como se fossem dançarinas de balé. Na cidade, ele é conhecido como fazedor de fugas, porque seu ofício é criar barcos à vela que levam embora aqueles que jamais voltam. Passei muito tempo imaginando por que também ele não se aproveitava de seu talento e partia daqui, em busca de uma vida com mais sabor e oportunidades. Mas isso foi até o dia em que, depois de lhe vender dez velas, saí de sua casa e parei à porta, o coração acelerado, o olhar ainda encharcado com o gesto atencioso dele em abrir a porta para que eu saísse da casa. Enquanto esperava meu corpo se acalmar e minha alma se embrenhar em mais uma fascinação, eu escutei seu tio, e também assistente, perguntar-lhe por que ele não ia logo embora da cidade, por que não mudava a sua vida para melhor e deixava para trás esse fim de mundo. Lembro-me do silêncio que se seguiu, breve, mas significativo. E o fazedor de fugas disse, a voz entrecortada pela emoção do afeto, que ele acreditava mais nas velas que iluminam do que nas que abraçam o vento para concluir partidas. O tio resmungou, entendendo nada do que o sobrinho dizia. Eu sorri, caindo de vez no abismo da fascinação.

O poeta rancoroso e descrente diz que eu sou uma desmiolada, onde já se viu se permitir fascinar desse jeito?  Que minha mãe tinha razão ao me educar como educou, mas que deseducada que sou, aprendi tudo errado. E que agora eu trago para a minha realidade o que deveria ser apenas poesia. Mas se engana o poeta, ele que não conhece bem o próprio dom. A poesia nasce do que já existe, mas ainda não sabemos explicar. Nasce do que desejamos, mas não bastam as mãos para pegá-lo. Nasce do outro, para o outro, pelo poeta. Nasce antes, durante e depois. Nasce da contemplação do que poderia ser, que talvez nunca seja, mas a simples ideia de sua existência alimenta a alma de vontades.

Fascinar-se é possível, pode ser bom, ainda que seja um risco. 

Fascinar-se é preciso. 

Imagem: stock.sxc.hu 


Comentários

Zoraya disse…
"sou uma devassa emocional, uma meretriz desavergonhada e de unhas cravadas no sentimento" SENSACIONAL.Carla, essa história foi linda. Muito obrigada. Beijos
albir disse…
Pronto, Carla, me fascinei! De novo.
Carla Dias disse…
Zoraya... Eu que agradeço você gastar um tempinho lendo meus textos. Beijos!

Albir... Obrigada por se permitir fascinar. Beijo!

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