A TIA [Ana González]
Em meio a esta viagem de volta a minha casa chega a notícia já esperada. Ela se foi. Depois de uma cirurgia, quinze dias de UTI e a batalha entre diagnósticos controversos e notícias às vezes esperançosas.
Ela foi referência em minha vida, como são todas as pessoas de que guardamos importantes lembranças, marcas de tempos que foram bons. Permanências que provocam um calor dentro de nós e que são fáceis de carregar.
São de outra espécie as lágrimas que correm dentro de mim, em forma de memórias se desenrolando lentamente num cenário interno acinzentado. Assim cinza é o meu choro começando a escorrer devagarzinho dos meus olhos que seguem as paisagens rápidas se movendo na janela deste ônibus que me leva. Eles não estão mais secos como estavam no tempo da espera. Espera do fim, do inominável. É começo de noite e a lua –imensa e cheia - despeja um clarão suave sobre meu colo. Prata líquida.
Foram muitas as férias na infância no interior de Minas, com queijos na casa em estilo anos cinqüenta, beleza inesperada na pacata cidade. A sobremesa com bolachas, creme e cobertura de chocolate. Lembro-me de uma das primas recém-nascida no berço. E a tia ainda tinha espaço para visita.
Na adolescência, a cortina na janela avisava que o almoço estava pronto. Hora de sair da praia. O mexido mineiro de arroz e feijão com ovo. A lasanha, o pudim. Tudo rápido. Ela tinha jeito especial para fazer as coisas. O humor sempre pronto a resolver todas as questões. A vida era leve a seu lado. Era a tia das férias.
No leito do hospital, ela estava desfigurada e com as marcas de um sangue coagulado pela face, a tingir os dentes em sua boca entreaberta. Ela não parecia a mesma pessoa. Viva? A vida e a morte assim tão próximas nos ensinam que a medida do nosso tempo é inexorável. Somos muito pouco, quase pó. Somos pó.Na idade adulta, ela tinha outro diálogo comigo. E ouço ainda seu conselho: “Cuide de você. Vive a sua vida, filha.” Eu não posso imaginar qual seria o discurso implícito que haveria atrás de suas palavras. Mas havia muito amor, com certeza.
Os últimos momentos que vivi com ela não parecem se enquadrar nessa história de alegrias e de muito afeto. A velhice doente, o corpo desfigurado na cama de um hospital, os olhos fechados, a boca muda. Mas, talvez este texto possa ser uma resposta para a perplexidade da morte. Talvez ele seja uma espécie de salvação. Quem sabe possa também diminuir o luto e a tristeza.
Passo minhas mãos pela sua cabeça. Procuro sua mão pequena que apresenta uma pele macia e delicada. Manchas roxas pelos braços me contam de uma dor que ela não sente mais. Uma dor impossível de ser medida. Mesmo assim ainda tento conversar com ela, nessa que foi a última visita, como se fosse possível uma linguagem compreensível na escuridão da inconsciência. Posso ouvir com clareza o som de sua voz, posso compor o tom e o ritmo de sua fala, posso acompanhar sua risada. Sim, sua risada clara a brincar com a vida e a presença de seu humor. Imagino que ainda posso rir com ela.
Obrigada, tia.
Comentários
Um braço!
Meus Pêsames.
Obrigada por compartilhar!
você conseguiu um duplo efeito: homenageou sua tia e emocionou seus leitores. Parabéns!
Obrigada. Bjss
Obrigada por compartilhar.
Um beijo,
Leticia
desde já agradeço.
Franklin Alberto
drfranklinrj@yahoo.com.br
Franklin, obrigada pelo estímulo. Farei o possível para falar dos impressionistas no próximo mês. E também tem a Bienal de artes chegando. Assunto não falta, amigo das artes. Ainda bem, neste mundo tão faltoso de beleza. Continue em contato.
Obrigada a todos!
Ana González