JÁ NÃO EXISTIA >> ANDRÉ FERRER
Finalmente,
o trabalho na farmácia ajudou-me a descobrir um texto. Foi na quarta-feira. Lembrei-me,
então, da necessidade de entregar esta crônica (parece-me, no entanto, que não
deixei de pensar na urgência da redação um minuto sequer na última semana) e o
texto começou a nascer enquanto eu atendia àquela senhora.
Ela
devia ter uma casinha humilde e bem arrumada. Tricô e crochê no dormitório. Um
nicho no corredor — o espaço dos boletos bancários, das queixas e da Nossa
Senhora. Na sala de estar, entretanto, não devia faltar o paganismo kitsch e suburbano. Um diligente deus
Hermes, um comboio de elefantes hindus coloridos e, entre outras cerâmicas, um
galinho do tempo disposto à direita do televisor ligado. Para cada bibelô, uma
história dividida com o marido. Há quase trinta dias, ela o visitava no
hospital.
—
Hoje, meu velho, eu vou à tarde. Logo depois do almoço.
Ao
prestar atenção na entrevista, ela parecia fazer esquecer o próprio drama.
Indiferente, a velha devia ter o hábito de assistir a todos os programas de
televisão que pudesse, desde o amanhecer, como uma espécie de aquecimento para
as novelas. Mas até que a psicóloga estrábica, a entrevistada naquele talk show matinal, falava de coisas
interessantes a respeito da vida moderna.
—
Então era isso?! A felicidade está nas perguntas e praticamente nunca está nas
respostas!
O
velho ranzinza já não existia por causa da doença. Do mesmo modo, conforme a
mulher tinha percebido anos atrás, o marido trabalhador e viril já não existia.
Por quê? A vida não passa, mesmo, de uma brincadeira de mau gosto? A vida não é
mais que uma sacanagem muito bem urdida?
—
Ora, se eu tenho medo de perguntar, imagina de responder!
O
namorado criativo e sensível já não existia. Por causa do quê? Do cansaço? Da
rotina? Da maturidade? De quem, então, era a culpa? O culpado era ele? Ou a
jovem mulher que se empenhara tanto na conquista de um noivado?
—
É, doutora, a vida não admite respostas.
De
acordo com a psicóloga na TV, a vida moderna e veloz era feita de respiração e
perguntas. Nada mais. Enquanto avançava, ela prescindia de solução. As
respostas a inviabilizavam.
Nove
horas da manhã e a velha caiu em si.
—
Eu preciso fazer compras antes da visita — ela devia ter dito ou, pelo menos,
foi assim que eu supus (ou a imaginei dizendo) a partir daqueles pedaços de
vida que, na quarta-feira, rapidamente, passaram ao largo do meu espírito
impressionável e observador.
O
balcão da farmácia onde eu trabalho é como a proa de um navio quebra-gelo.
Homens, mulheres e crianças trazem aquele aspecto frio e indistinto. As pessoas
chegam e, só depois que a brancura monótona encontra a quilha do navio, estala
e se fende, alguma coisa aparece a respeito delas. Não há chance, bem
entendido, para qualquer detalhe em profundidade. Todo o resto deve ser suposto
ou imaginado.
—
Eu preciso comprar um barbeador para o velho.
A
senhora, enfim, notou que era tarde. Olhou para um retrato na estante. O deus
Hermes, o comboio de elefantes coloridos, o galinho do tempo.
A
psicóloga era estrábica, mas tinha razão.
Ninguém
precisa temer as perguntas se as respostas, boas ou ruins, não guardam qualquer
importância.
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E continue nos ajudando a supor ou imaginar o que se apassa no balcão da farmácia. Abraço.