VOZES >> Eduardo Loureiro Jr.

Ano passado, quando eu ainda trabalhava no MinC, tive que ligar para todas as secretarias de cultura do Brasil em busca de algumas informações. Era uma tarefa chata, repetitiva:
— Olá, meu nome é Eduardo Loureiro Jr. Trabalho no Ministério da Cultura. Estamos elaborando um catálogo referente ao centenário de morte de Machado de Assis e gostaríamos de saber se vocês realizaram ou pretendem realizar algum evento comemorativo relacionado ao tema.
A resposta também não variava muito: às vezes, "Sim"; às vezes, "Não". No máximo, aquele velho e irritante: "Você pode aguardar um pouco na linha? Vou transferir a ligação para o setor responsável."
Eu estava em minha vigésima ou vigésima primeira ligação, repetindo as palavras como se fosse uma máquina, quando me atendeu aquela voz:
— Boa tarde. Secretaria de Cultura. Fulana. Em que posso atendê-lo?
Eu já nem reparava mais para qual DDD estava ligando, mas ali não havia dúvidas: sotaque mineiro. Uma voz feminina que me fez tropeçar, cair e bater com a testa no chão:
— Ahn?! Ein?! Como?! Sim, meu nome é Edu, não, Eduardo, É do ar do Pátio, não, Eduardo Lorêro, Lou-rei-ro, trabalho no link, não, no MinC, estamos fazendo uma catarse, não, um catálogo sobre o Fernando Pessoa, sabe aquele poema "Quando eu não te tinha / Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo. / Agora amo a Natureza / Como um monge calmo à Virgem Maria"? Não, desculpe, é um catálogo sobre Machado de Assim. A morte dele. Não, ela já está morto há cem anos. Você têm algum evento programado? Pode me mandar o convite e a passagem? Desculpe, não é nada disso. É muito mais que isso. Você sabe... eu... você...
— Boa tarde. Secretaria de Cultura. Fulana. Em que posso atendê-lo? — a voz repetiu, sem qualquer tom de irritação.
E só então percebi que minha boca tinha ficado muda com a queda, que aquelas palavras todas tinham acontecido apenas na minha cabeça. Levantei-me, respirei fundo e falei meu texto decorado só pra receber a pior das respostas:
— Você pode aguardar um pouco na linha? Vou transferir a ligação para o setor responsável.
Eu disse "tudo bem", mas queria mesmo é ter dito "que voz maravilhosa você tem! Nunca ouvi uma voz tão linda! Posso ir até BH para conhecê-la? Você quer se casar comigo?"
É uma questão de segurança nacional, de manutenção das instituições mais sólidas de nosso país, de preservação da família... Uma mineira não pode falar ao telefone com outro homem que não seja seu namorado ou marido. Aquela voz dengosa vai se enroscando no ouvido da gente e a gente corre o risco de esquecer de si, dos compromissos, do trabalho, do casamento. Nessas horas fica claro, óbvio, patente, que Minas já foi mar há milhares, talvez milhões de anos. A prova são as sereias que continuam lá, derrubando homens na falta de navios para afundar.
Mas isso não é uma crônica sobre mineiras. Voltemos às vozes...
Semana passada, também por motivos profissionais, mantive contato telefônico com uma mulher que não era mineira mas Pelamordedeus! Valha-me, Nossa Senhora! Valha-me, Nosso Senhor Jesus Cristo. Estávamos resolvendo um problema, algo que necessitava de uma solução urgente, mas que eu desejava que se prolongasse indefinidamente para que eu pudesse continuar ouvindo aquela voz. Quanta graça! Seus leves sorrisos faziam cócegas na minha imaginação... Se ela fala desse jeito ao resolver um problema, como é que falará quando estivermos na penumbra do cinema, num bosque, no quarto? Pena que a dona da voz era tão eficiente que resolveu o problema em cinco minutos.
E a Ceumar, gente?! Não bastasse ser mineira, ainda é cantora. Sem exagero, faz quase dois anos que escuto a mulher quase todo dia e não me canso. Tudo bem que os arranjos ajudam, mas e quando ela canta — a capella — "olha pro céu, meu amor, vê como ele está lindo"... Eu olho pro céu de Brasília sobre a minha cabeça, olho pro mar de Fortaleza dentro da minha cabeça, olho pra você, Ceumar, meu amor, e realmente você é linda. E lá estou eu falando sozinho de novo, caidinho por uma voz.
Dia desses, li um artigo em que o autor aconselhava as pessoas a procurarem parceiros que tivessem o rosto bonito. O autor defendia que era preferível um rosto bonito a um corpo bonito, já que olhávamos com muito mais frequência para o rosto de nosso parceiro do que para o seu corpo. Faz sentido. Eu, particularmente, acrescentaria que — mais do que beleza facial — deveríamos colocar beleza vocal no topo da lista de escolha. Afinal, muitas vezes não estamos nem olhando para o rosto de nosso parceiro: ao telefone, no cinema (olhando para a tela), no carro (olhando para a rua), no escuro do quarto... nosso contato é mais auditivo do que visual.
Só não vale usar a beleza da voz com intenções ilícitas como fazer cobrança de cartão de crédito ou discutir relação. É como desmascarar um Papai Noel para revelar um pai barrigudo qualquer. Ou como desfigurar um bichinho de pelúcia para que ele faça o papel de espantalho. Voz bonita só deveria estar autorizada a cantar e a sussurrar no pé do ouvido.
De fato, mesmo correndo o risco de erro gramatical, ouso afirmar que o feminino de falo é fala. Se no homem fica bem o membro duro, potente; na mulher fica melhor a voz macia, suave.
E agora me deixem atender aquele telefone que não para de tocar. Talvez seja uma mineira.
Comentários
Me permita concordar com vc que voz é básico. Um homem com uma voz agradável é sedução de plano.
Obrigada por me fazer sorrir logo cedo.
Um abraço
Mônica
Adorei a crônica de hoje, por motivos óbvios, claro!
Aqui na Bahia falamos de acordo com o rimo das águas de yemanjá como se trata de uma sereia é possível que homens sensíveis ao amor sejam enfeitiçados... Espero ter a sorte de um dia atender ao telefonema de um homes sensível à poesia das palavras e às vozes do amor!!!
Liga não, Ana Lucia. Essas brincadeirinhas são inveja da oposição. :)
Viva o Ameriquinha, Cristiane! Um dia eu chego lá: em Itabira. :)
Sim, monica, um dia você terá a sorte... de acordo com o ritmo das águas do Tempo. :)
Carla, ainda bem que você voltou. Não consegui identificar essa outra crônica de que você falou. Fique com inveja das mineiras, não: cada qual com o que Deus lhe deu. :)
Ele tem rodado na internet sendo atribuído ao Drummond, mas não é, é do Felipe Netto.