O homem que não sabia morrer >> Leonardo Marona

Escutou uma algazarra que o fez ir até a janela, por mais que não sentisse o próprio corpo dentro dos eixos. Um gosto terrível no céu da boca – mas ao mesmo tempo uma sensação de leveza – quase o fez pular.

De repente ouviu um baque e era como se o tivessem arrolhado dentro de uma garrafa, sem lançar a garrafa ao mar, para sempre perdida entre pedras e baratinhas brancas. Tudo isso encostado na janela. A algazarra vinha da calçada em frente ao seu prédio. Parecia que alguém havia se jogado. A multidão fazia um som disforme, que aumentava e diminuía, mas percebia-se claramente que muitas pessoas riam, outras cochichavam por entre ombros e algumas, mais medrosas, faziam o sinal da cruz olhando para o céu.

De modo que ele olhou também para o céu e o céu era só aquilo mesmo: uma total incompreensão em azul violáceo com rajadas de fumaça branca sob a forma de animais selvagens compreensíveis apenas na cabeça de um louco.

Ficou atormentado ao saber que, bem na frente da sua janela, alguém havia se jogado pela janela. Possivelmente acima da sua janela. É que ele havia acordado também pensando em se suicidar, como em toda quarta-feira, e ter visto aquilo o forçou a tomar uma decisão radical. Os pensamentos mais importantes da vida de um homem acontecem em menos de um minuto. Quando se reflete demais, pondera-se, e no fim não se faz nada. Começou então a procurar a melhor maneira de acabar com tudo, de uma vez por todas.

As primeiras idéias que lhe passaram pela cabeça foram as primeiras idéias que passam pela cabeça de qualquer um que deseje se matar. Um tiro na cabeça. Não poderia arranjar uma arma porque não conhecia quem tivesse uma e os bandidos que conhecia haviam sido presos ou mortos ou simplesmente esquecidos por si mesmos. Enforcado. Muito pouco prático e correria o sério risco de apenas perder a voz ou se engasgar. Pular da janela lhe pareceu prático, mas um engraçadinho lá em baixo já havia pensado nisso antes. Assistia na TV ao depoimento de um ministro acusado por corrupção quando pensou: veneno de rato!

Foi até a portaria perguntar ao zelador se podia lhe emprestar um punhado de veneno de rato. Havia na verdade dois zeladores dentro dos seus macacões cor-de-merda e, quando lhes falou, eles apenas se encolheram um sobre o ombro do outro e cochicharam baixinho, o ignorando completamente. Muito perturbado, saiu porta afora.

A multidão asfixiante. Todos gritavam e queriam ver o morto. Havia uma ambulância estacionada e uma patrulha policial. Como a multidão não dava folga, impedindo os enfermeiros de recolherem o cadáver, os policiais começaram a distribuir cacetadas no povo, indiscriminadamente. Uma velha caiu no chão atrás da dentadura. Um garoto de suspensórios e corte de cabelo militar foi lançado de queixo sobre o meio-fio.

Então um clarão se abriu e foi quando ele enfim pôde ver uma massa de carne contorcida, as pernas dobradas sobre o tronco que primeiro havia se chocado com o chão. Era uma pasta vermelho-escuro com ossos para fora. Mas pelo crânio dava para ver que era um homem novo, mais ou menos da sua estatura, e tinha o cabelo parecido com o seu, inclusive a barba mal-feita, como a sua. “Miserável”, ele pensou, “por que tomou o meu lugar?”.

Lembrou que algumas plantas são letais, mesmo que ingeridas em pequena quantidade, e pensou que seria bem romântico morrer mastigando uma flor com ácido cianídrico, atropina ou conicina. Lembrou também que, perto do seu prédio, num canteiro da Praça Marinha do Brasil, havia, além da estátua do Marquês de Tamandaré, um pomar de beladonas que, depois de ingeridas umas bagas, provocam rapidamente náuseas, delírio, cegueira e, por fim, a morte.

Foi correndo até a praça, mas, quando viu a saída da creche, com risadas e socos e pirulitos e pequenas bombas de pólvora aos pés das babás de cara murcha, sentiu uma vertigem terrível que o obrigou a lançar o corpo violentamente sobre um banco de pedra, bem em frente à feira. Ao se largar errou o alvo e caiu estatelado no chão de terra suja. Nenhuma pessoa o ajudou ou mesmo riu, e foi a primeira vez que isso o incomodou, porque imaginou que, como nos filmes, um suicida tivesse direito a ter por perto aquela pessoa cujo destino fosse salvá-lo. Depois lembrou de um filme italiano no qual um menino alemão, após a morte do pai nazista pelas brigadas aliadas, sem saber o que fazer, tomado pelo desespero, se joga do terraço de um edifício em ruínas. Aquela imagem enterrou qualquer possível hesitação.

Levantou outra vez, nunca antes tão certo do fim, mas teve que desistir das beladonas, porque preferiu evitar as náuseas, o delírio e a cegueira. Não havia motivo para tanto caso. Decidiu seguir pela feira, onde apenas os gatos de rua se aproximavam dos seus pés em verdadeiras hordas, como se ele fosse um messias, e foi até a praia, onde poderia se jogar nas pedras. Refletiu um pouco e concluiu que, com o mar calmo da Praia do Flamengo, seria apenas um joelho ralado ou uma tíbia partida no meio. E nada mais frustrante do que um suicida incompetente gritando por ajuda ao primeiro passante.

Andou por toda a extensão de areia da praia, chutando água e olhando as ilhas ao fundo, pensando que tudo é uma questão de dar, tudo é uma questão de dor, como dizia o velho poeta e, afinal, o que ele mesmo havia dado, o homem? Nada, ele não havia dado nada. Não havia cedido a mais minúscula partícula de poeira a ninguém. E todas as vezes que precisou dizer alguma coisa que julgava importante para quem estivesse ouvindo, se enrolou a ponto de emudecer e gritar em pequenos intervalos, no que nem mesmo sua própria consciência era capaz de acreditar. Tudo por liberdade? Não era isso. Não se luta por liberdade. Liberdade é a própria luta pelas coisas que importam. E mais uma vez pensou na garrafa onde fora arrolhado.

Os delírios mais a água morna e complacente sobre seus pés quase lhe desviaram a atenção para sensações leves e primaveris. Sacudiu a cabeça, beliscou o próprio pulso como quem diz: “não vá afrouxar agora, cagão!”. Então seguiu a passo firme até uma das passarelas que cruzam as pistas do Aterro do Flamengo.

De cima da passarela, pensou em simplesmente se jogar. Olhou, viu que vinha um carro muito feio, verde-musgo, então esperou até que viesse um mais bonito para cair por cima dele. Uma kombi, várias motos com motores entupidos vazando óleo na pista, variantes, viu até mesmo um trator de limpeza urbana. Olhou para baixo: até o vento havia desaparecido, entediado. Sua morte era um fiasco. Finalmente desistiu da ponte quando viu passar uma fila de caminhonetas com mulheres enfiadas nos seus biquínis que, mesmo de longe, pareciam muito grandes e largos, com pêlos aparecendo, gritando em alto-falantes e jogando beijos aos pedestres, numa passeata do orgulho gay-juvenil.

Cabisbaixo, voltou à sua rua, onde a multidão já havia ispersado. As pessoas esbarravam nele e nem se davam conta. Acertou um soco direto no olho de um gordo de barbicha que, no entanto, apenas desviou de uma pedra e continuou seu caminho, rindo e segurando as calças enquanto falava ao telefone. No caminho viu um gato deitado como um vagabundo iluminado sobre os ladrilhos da entrada de um edifício. Dormia placidamente, e sua carcaça mantinha o ritmo de um sonho bom. Assim que passou na frente do edifício, em silêncio e admirado, o gato levantou a cabecinha numa radiação cósmica, o rabo em transe, e ficou olhando para os lados como quem não vê nada, mas mesmo assim se assusta.

Ainda na direção do seu apartamento, frustrado como um sujeito brocha e tatuado aos 60 anos, cruzou com a única pessoa que lhe olhou durante todo o percurso. Era uma mulher bem bonita, mas muito gasta e mal-vestida, que falava sozinha contando os próprios dedos, completamente descabelada. Ela vinha concentrada em sabe deus o que quando, a uns cinco metros dele, fixou seus olhos arregalados nos dele e os manteve dessa forma vidrada até que ele a ultrapassou, então ele virou e viu que ela havia corrido - gritando desesperadamente – e caiu no chão de joelhos logo mais à frente, na esquina, como quem não sabe usar crase.

Não entendeu nada daquilo e, de qualquer maneira, não tinha mais forças para pensar em nada. Antes de entrar no prédio, parou no meio da calçada e teve de súbito uma última idéia. Fechou os olhos, aguardou até abrir o sinal para os carros, esperou que eles começassem a passar, então atravessou vagarosamente a rua. Aparentemente nada aconteceu, pois chegou ao outro lado da rua sem que alguém ao menos ofendesse a alma de sua mãe.

Na calçada, chorou sentado no chão, com as mãos na cabeça, batendo os pés com violência nas pedras portuguesas. Olhou para cima e viu uma nuvem de borboletas. Eram todas amarelas, bem claras, e uma delas pousou na ponta do seu nariz. Ficaram se olhando com a intimidade dos namorados silenciosos. Foi um aviso. Não poderia se matar.

Inflou os pulmões para se levantar, enxugando as lágrimas. Sentiu-se bem outra vez, cheio de vida, por causa das borboletas que haviam sido tão boas com ele, que nunca lhes havia dado nada.

Correu até seu edifício. Queria dizer a todos que amava a vida, amava cada minuto de vida. Todos os erros do mundo, ele os amava. As pessoas e seus defeitos, tudo cabia no coração. Amava a todos, com toda força. Queria muito abraçar seu Pai, pensava no “P” maiúsculo.

Passou como um raio pela portaria, não sem antes gritar que amava todos os que sofriam e viviam intensamente suas vidas nesse mundo injusto, mas fez tudo como tão bem-aventurado quanto o filho pródigo que abandona o pai sozinho em casa para seguir em frente. E o porteiro do prédio, que trocava carícias com uma doméstica que carregava um carrinho de feira, nem mesmo reparou que ele havia passado.

Quando saiu do elevador, encontrou a porta do seu apartamento escancarada. Escutou vozes lá dentro. Monótonas, quase envergonhadas. Viu alguns vizinhos pelas frestas das suas portas. Sumiam e apareciam sem parar.
Entrou por fim e viu dois sujeitos vestidos com ternos escuros de largas ombreiras, apertados na cintura. Um gordo e alto, um magro e baixo. Ambos muito suados. O magro lia aborrecidamente em voz baixa os artigos de um atestado. No sofá, viu seu velho pai chorando e balançando a cabeça em negação. As mãos por entre os últimos cabelos. A janela aberta. As cortinas haviam ficado para trás de tudo, ao sabor do vento. Um pássaro de peito amarelo e asa branca pousou e rapidamente abandonou o parapeito. Um papel rabiscado e assinado com sangue dançava em rodamoinho pelo chão da sala. Quando enfim entendeu tudo. E não era nada.

Comentários

Legal Adviser disse…
Keep on ridind!

Gostei dos temas!

Cumprimentos,

Hugo Tavares

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