SAMBAS E MORINGAS >> Albir José Inácio da Silva
Acordou de madrugada, e olha que
sambista só gosta de madrugada antes de dormir. Classificados debaixo do braço,
café preto e amargo pra acordar e também por falta de outros ingredientes.
Samba se canta, não se come. O
Hélio joga em todas, faz samba, poema, escreve peça, redige manifesto. Ninguém
compra mais samba, poesia nunca vendeu mesmo. Teatro não tem patrocínio e
manifesto anda desmoralizado porque todo mundo fez manifesto contra a tirania,
mas ninguém se lembrou de chutar pra fora a bunda do tirano.
A verdade é que a despensa estava
vazia. Era sexta de carnaval, mas Hélio foi à luta. Cruzou a cidade da Pavuna
ao Leblon, da Freguesia à Penha Circular e recebeu mais nãos do que lhe dava a
Margarete, apesar dos versos que fazia pra ela.
Às duas da tarde, sol de
fevereiro, o bardo encostou num balcão da Braz de Pina. Avaliou o bolso e pediu
uma Iscariol, dois ovos coloridos e um varejão. Achou melhor pagar adiantado,
moedas não são confiáveis, ainda menos num lugar estranho.
A cerveja gelada fez sentir uma
brisa que não havia antes. Fechou os olhos e respirou quase pacificado. Ouviu
um batuque. Descendo a rua, um amontoado barulhento engarrafava o trânsito. O
motor dos carros atrapalhava o ouvido, mas tinha alguma coisa familiar. O
puxador se esgoelava no microfone e, mesmo com chiado e microfonia, Hélio
reconheceu a sua Odete.
“Odete, Odete, eu te dou uma
bicicreta e tu me chega de chevete;
Odete, Odete, eu te dou uma
bicicreta e tu me chega de chevete.”
E o puxador acrescentou até um
breque:
“Cumé que tu exprica isso, Odete?”
Há dois meses Hélio se inscreveu
no concurso de samba. Entregou letra
datilografada e fita cassete da própria voz. O concurso não aconteceu porque
uns participantes se esmurraram ainda na fase de classificação. Depois andou
mostrando o samba pros amigos na Lapa e não pensou mais nisso, era só mais um
samba pra gaveta. Mas agora estava ali.
O botequim se encheu de foliões.
O puxador entregou o microfone pro substituto e avisou:
- Não deixa cair não, que tá
bonito! – e subiu os degraus na porta do bar.
Sambistas de dois metros existem.
Mas esse tinha dois também de largura. Usava cabelo de três cores e um machado
viking na cintura. Hélio não ficou olhando, mas teve certeza de que o machado
não era de plástico.
- Bota uma da moringa aê! – e
bateu a prancha cheia de anéis de aço no balcão.
- Já vai, Tanato – apressou-se o
português. Trouxe um copinho shot e pegou a moringa.
- Esse não! Do outro!
Manuel encheu o copo americano
até transbordar. A mão enorme não derramou nada, a não ser a única gota que ele
dedicou ao santo. Foi miserável, o Tanato, não dava a mínima pra esse negócio
de dízimo.
Hélio aproveitou o momento de
devoção para perguntar o mais suave que pôde:
- Seu Tanato, esse samba é que
quem? – falou apontando pra rua.
- Por quê? Não gostou?
- Gostei sim. Muito bom... só
queria saber quem fez.
Tanato deve ter aprovado o “muito
bom” porque sua cara desamarrou e ele mostrou os dentes muito brancos. Virou o
copo sem uma careta, como se fosse refresco de groselha.
- Este samba... - demorou,
estalando a língua, para dar efeito à frase – ...é de minha autoria!
Hélio abaixou o olhar pro balcão
e começou a batucar com os dedos como se pedisse licença pra interromper a
conversa e curtir o samba. E ainda murmurou no ritmo:
- Odete, Odete...
- Pindura aê, Manel – gritou
Tanato sorridente e voltou pro bloco na cadência da Odete.
Obs: Este texto integra o
Programa Crônica de um Ontem e foi publicado originalmente em 07 de setembro de
2020.
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