1985 >> Carla Dias


A vida confunde as pessoas, aceitou isso. Foi ao escutar um comentário de um estranho - também passageiro do ônibus das 16h43, sentido volta pra casa, após um dia de trabalho árduo e insatisfatório, e doses de café frio – que sua perspectiva mudou.

O homem, claramente revoltado com sabe-se lá o quê, conversava sozinho. Não, não estava de fones de ouvido, batendo uma caixa com voz saída do celular. Ele conferiu. A tecnologia tornou quase impossível separar os insanos dos conectados, considerando a certeza ancestral de que, se a pessoa andasse pela rua falando sozinha, era louca.

Havia algo de libertador na feição do homem. Ela não se parecia com nenhuma das que andava encarando ultimamente, das treinadas. Nunca havia refletido sobre feições sendo tão bem treinadas, mas a vizinha - cria do teatro que se tornou influenciadora de canal de poucos views - vestiu sua melhor feição de escárnio, lamentou a ignorância dele e depois o catequizou: 

- É a história do mundo, conhece não?

Às vezes, conhece não.

Feito hoje, olhar cravado na coreografia do corpo miúdo do homem de voz potente e vocabulário limitado: 

- Que que é isso?! Que que é isso?! Que que é isso?!

Segurava um pedaço de papel e vagava pelo corredor, mostrando-o aos passageiros, que envidraçavam o olhar ao mudá-lo de direção.

Levantou-se para descer no próximo ponto. Foi quando, contradizendo o conselho da vizinha atriz que conhecia tão bem o enredo do mundo, encarou o outro. Quase deixou escapar um “sei o que é isso, o não saber o que é isso”, mas o silêncio se esbaldou na sua garganta, bloqueando o curso natural da voz.

O homem se aproximou, cercou-o, soprou na cara dele e nada. Seu corpo foi incapaz de corresponder à curiosidade alheia com movimento. 

Todos olhavam para eles. Tinha certeza de que pensavam que dois doidos no mesmo ônibus era cobrança superfaturada de pagamento de pecado. Mas isso importou por apenas alguns segundos. Sentiu alívio quando passou a não importar.

Não importar, em determinadas situações, é liberdade em formato de “dane-se”.

O homem parou em frente a ele e expeliu uma gargalhada desritmada, servida com perfume de cachaça de ontem. Isso o fez ruminar sobre a duração do efeito dos destilados. Então, sorriu, e sua feição se tornou ainda mais dele. 

Sacou o papel — que enfiara no bolso, depois de todos se negarem a ler o que estava escrito nele — e entregou a ele.

O papel era muito velho, muito mesmo. Amassado, rasgado nas pontas, com partes desbotadas. Foi quase impossível ler o que estava escrito, até a memória ajudar e tornar possível.

Percebeu que não era tão ignorante assim em relação à história do mundo. Olhou para o homem, sorriso dele ainda sustentado, olhar curioso. Então, conectados que só, começaram a gritar em uníssono:

- Que que é isso?! Que que é isso?! Que que é isso?!”.

Alvo dos olhares-plateia, o ônibus das 16h43 passava pelas avenidas, ignorando o espetáculo compartilhado no transporte público. Antes de passar um minuto de pausa, um silêncio conciliador, ambos gritaram, ao mesmo tempo: 

Alive and kicking!

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