PAPAI TEM COISAS PRA FAZER >>> NÁDIA COLDEBELLA


A menininha entrou na sala da psicóloga. Tinha oito anos. Era tão franzina que parecia comer apenas uma vez por dia - a psicóloga, com pena, deixava uns pacotes de bolachas e doces num balcão perto da porta e a criança os "roubava", feliz, quando saía. Seu aspecto era sempre sujo e, às vezes, o cheiro ruim da falta de higiene inundava a sala. O cabelo negro era opaco pela falta de lavagem e os piolhos andavam satisfeitos, em meio àquela selva ondulada.

Ela fora encaminhada para ser avaliada junto ao Sistema de Justiça. Suspeita de abuso sexual. A psicóloga, bastante experiente nesse tipo de avaliação, reconhecera os sinais evidentes, mas a criança fechara-se hermeticamente até ali. E sem uma palavra sua, era impossível pôr fim ao sofrimento.

Nas três sessões anteriores, ela havia comparecido acompanhada da avó e do avodrasto - era como ela se referia ao marido da avó. A psicóloga não gostara de nenhum dos dois. A avó parecia de uma passividade absurda. O avodrasto causava arrepios: era alto, andava sempre com uma blusa vermelha aberta, uma corrente de ouro bem aparente e ostentava uma cabeleira branca à la Roberto Carlos. Sua fala era mansa, mole e pretensiosamente sedutora. Muito clichê, um verdadeiro cafajeste. Ele e a avó pareciam sempre muito empenhados em esconder alguma coisa. Apesar da má impressão e da eventual desconfiança que causavam, era notável o afeto da criança pelos dois.

Até aqui, a menina, embora triste, mostrava-se colaborativa quando o assunto não tangenciasse a possível violência. Quando isso acontecia, ela mostrava-se muito resistente e a psicóloga driblava a situação, buscando alternativas para que sentisse mais confiança. O resultado era lento, mas consistente: a menina trouxera o relato de diversas situações extremas, que a tinham como vítima e o pai como protagonista. Porém, ela não avançava, sempre se calava, deixando, nas entrelinhas, um segredo que não poderia ser revelado.

A terceira sessão findara e deixara na psicóloga uma certeza interna de que a criança havia sido abusada pelo pai, porém nenhuma evidência concreta surgira ainda. A profissional acreditava que esta evidência poderia emergir na quarta sessão, dado o estado de confiança que a criança saíra naquele dia.

Porém, na quarta sessão, a criança comparecera acompanhada pelo pai. Ele era um homem na casa dos trinta anos, muito sisudo e que andava nervosamente no corredor, a uma certa distância da criança. Parecia um fumante em abstinência. A menininha estava sentada numa cadeira, encolhida e pequena demais. Ao ser convidada para entrar na sala, negou com a cabeça:

 Não posso  disse baixinho.

 Por quê?  a psicóloga fez-se de desentendida, quando o pai olhou fixamente para a criança. Em todos aqueles anos de trabalho, descobrira que, ao fazer-se de desentendida e desligada, o ego dos suspeitos inflava de autoconfiança e eles eram mais propícios a dar com a língua nos dentes.

A criança não olhou para o pai, virou-se para o outro lado, muito assustada. Parecia olhar diretamente dentro dos olhos de alguém.

 Porque a Morte está aqui do meu lado e ela não me deixa entrar sozinha.

A psicóloga sentiu o corpo arrepiar. Não acreditava em bruxas, mas tinha certeza de que elas existiam, principalmente quando a maldade humana rondava. Sem cerimônia, seus olhos duros e frios encontraram os do pai, que olhou para o chão.

 Não tem problema, meu amor. A Morte pode entrar também. Vou bater um papo com vocês duas.

A criança levantou-se rapidamente, gesticulando um "vem" com a mãozinha para a entidade que olhara há pouco. O pai ficava mais e mais inquieto. Medo puro, reconheceu a psicóloga.

 O senhor pode sentar aqui e esperar  A psicóloga agora falava mansamente, com um sorriso falso nos lábios. O homem parecia em pânico. Ela deu as costas, colocou a mão na cabeça da criança e fechou a porta.

A criança puxou uma cadeira, esperou um pouco, puxou a outra e sentou. Ela fora educada, puxara a cadeira para a Morte sentar.

 Eu não consigo escutar a Morte   disse a psicóloga   então você precisa me contar o que ela disser.

A menina fez que sim com a cabeça e pediu papel e lápis de cor. Ela e a Morte queriam desenhar. A menina começou a pintar, mas a Morte não se mexeu.

 Ela disse que hoje não está com vontade. Vai só ficar me olhando.

 Eu posso pegar o papel dela e fazer um desenho também?  a psicóloga precisava ser gentil com a Morte.

A criança olhou para os olhos da Morte e fez um sim com a cabeça.

 Ela disse que pode.

A psicóloga desenhou um pouco e conversou trivialidades, procurando observar furtivamente o desenho da criança. Então perguntou:

 Por que a Morte veio com você hoje?

A menina olhou para a cadeira vazia, como se pedisse permissão.

 Lembra o que eu te disse da última vez?  argumentou a psicóloga para um pingo de gente interrogativo  Que o que a gente conversar aqui, fica aqui. Explica isso para a Morte. O que ela me contar, eu não conto para ninguém.  A criança voltou-se novamente para a cadeira vazia e fez que sim com a cabeça.

 Eu queria te contar uma coisa da última vez. Mas não tive coragem. Ia contar hoje, mas desde que eu saí daqui naquele dia, a Morte me seguiu e disse que não era para eu contar.  A criança suspirou. Parecia conformada  Ela me segue por toda parte.  Mostrou os desenhos, pretos, escuros, assustadores.  Olha, ela me segue no quarto à noite, quando eu estou rezando, quando eu estou na sala, ela sempre me segue e não me deixa contar nada.

 Você contou que a Morte te segue para alguém?  a psicóloga estava com vontade de chorar.

 Não, nem para minha avó. Só para você. a criança voltou a desenhar, tranquila, acrescentando detalhes à figura alta, preta, assustadora e magra que representava a morte dentro de um quarto, ao pé de uma cama, enquanto uma criança, que parecia ser a menina, dormia.

 Você tem medo da morte?

 Tenho.  Ela apontou para a cadeira  Mas dessa aqui não, só da outra.   agora apontava em direção à porta.

A psicóloga estava desnorteada. Sabia que a criança estava em sofrimento, sabia que o agressor estava lá fora, sabia de tudo, mas não tinha como provar. Estava de mãos atadas. A criança olhou para o relógio.

 Está na hora.  Virou para a cadeira vazia e voltou-se novamente para a psicóloga  A Morte disse que gostou de você e que da próxima vez vai me deixar vir sozinha.

A psicóloga abriu a porta para a Morte sair. O pai não estava mais no corredor, quem estava era a avó. A criança sorriu.

 O seu pai tinha coisa para fazer a avó disse, murcha. Ficou é com medo de ser preso e fugiu, pensou a psicóloga.

A criança ergueu os bracinhos, pedindo abraço. A profissional abaixou-se e a abraçou com força, apesar do medo fóbico de pegar piolho.

 Da próxima vez, vou contar meu segredo  a menina disse baixinho, no ouvido da psicóloga.

Mas não houve próxima vez. A criança nunca mais retornou. Mudou-se para local incerto e não sabido, a profissional ficara sabendo depois.

Esta história poderia acabar aqui, caro leitor, se não fosse as coincidências desse mundo. Há poucos dias, a psicóloga ouviu o nome da menina e demorou um pouco para reconhecê-lo. A menina, que já não era menina, morrera num terrível acidente, deixando uma filhinha de dois anos que, por dias, chorou inconsolável.

A psicóloga ficou triste. Havia esquecido da criança por um tempo. Depois pensou se alguém, além dela, se lembraria da dor daquela menina que, tão cedo, andara de mãos dadas com a Morte.

Comentários

Postagens mais visitadas