INVERSÃO TÉRMICA DA PESSOA >>> NÁDIA COLDEBELLA
Recentemente descobri que sou um poço de contradições. Estar
nesse tipo de poço é uma coisa muito complexa, pois enquanto um lado seu escala
as paredes, outro tenta cavoucar para ver se chega mais fundo. E não falo “lado”
num sentido metafórico. É sentido físico mesmo, direito e esquerdo, concreto.
Basicamente o corpo com dupla personalidade.
Nem sempre foi assim. Acho que é trauma. Eu sofri bullying
da minha irmã, quando eu era criança. Tô denunciando agora. Eu era uma pessoa
muito branca e a descarada passava por mim nos dias de sol, colocava a mão no
olho e gritava: "Ahhh, reflexo!!!". Nos dias piores, "Ahhh,
fantasma!". Uma vez sofri queimaduras feias e fui chamada de Dona Pimenta
na escola por uma semana. Então passei a vida inteira evitando o sol. Pode ser
essa a origem do meu trauma ou do meu poço de contradições.
Um dos eventos recentes que confirma essa teoria aconteceu
há pouco, no final de 2024. Fui com minhas filhas e minha irmã - essa do
reflexo - para Florianópolis. A primeira coisa que fiz quando cheguei lá foi
parar ao sol e tentar cegar a minha irmã com meu reflexo. Não deu. Depois
disso, foram sete dias de tortura, das dez às quatro da tarde, não por causa
dela, mas por causa do sol.
Ah, o sol. O meu é em virgem. E eu sou inteligente, apesar
de pálida: usei protetor solar fator 2500 até dentro da orelha e corpo coberto.
Literalmente. Houve um dia, 42 graus, sem nuvem, sem sombra. Cobri minha cabeça
com a saída de praia preta. Aproveitei, cobri meu rosto, pus um óculos de sol e
um chapéu. Eu usava um vestido comprido, então minhas pernas translúcidas
estavam protegidas, mas precisei jogar outra saída de praia para cobrir meus
braços.
O resultado foi várias cabeças virando para me olhar e um
maluco achando que eu estava de burca. Trombou comigo, levou um susto e saiu
fazendo inclinação com a cabeça, como se eu fosse a mulher do califa. (Depois
disso, houve mais bullying familiar, inclusive das minhas filhas, com fotos que
não compartilho nem morta e uma zoação que dura até o presente momento). Mais
sofrimento e teoria confirmada.
O que meus entes queridos não sabiam é que estava entrando
naquela fase ingrata dos quarenta e uns. Diferente de noventa por cento das
mulheres que se debulham em ondas de calor, eu sofro de ondas de frio. Na
praia, isso foi pior. Eu batia os dentes embaixo da burca, digo, da saída de
praia. Eu podia tirá-la e ficar como um lagarto ao sol, mas o fato é que é
melhor ser esposa do califa do que Dona Pimenta.
Nessa época sentia só frio. E naveguei em outras ondas
também, como aquela que me fazia querer passar o dia deitada, sem culpa. Ou uma
que me deixava animada e enfurecida ao mesmo tempo. Também peguei outra, que me
ensinou a odiar - odiei o sol me cozinhando na areia e depois transferi para
coisas mais odiáveis. Esse ódio estou aprendendo bem, para usar por aqui. Eu
prevejo que logo haverá mortes numa história ou outra.
De fato, as minhas contradições até aqui eram sol ou sombra,
dormir ou acordar, mas estava resolvida quanto ao frio interno e ao ódio que
comecei a aprender. Era tudo bem definido. Até ontem, quando o ódio do inverno
eclodiu.
Veja, estou de férias. O primeiro dos dez dias. Sentei no
sofá para assistir um filminho com minhas filhas, aproveitando o clima do momento.
Até esse momento era chuvinha, friozinho, cobertinha, pipoquinha, sabe como é.
Não, não sabe. Você não faz ideia. Ontem, quarta-feira, os
"inhos" e "inhas" viraram desgraça: chuva torrencial,
ventania do inferno, sete graus celsius. Às quatro horas da tarde, eu, com os
pés congelados, não por causa do frio insuportável lá de fora, mas por causa da
minha própria onda de frio.
Quatro meias, uma manta, uma coberta, um cobertor e um gato.
Meus pés congelados se mantiveram insensíveis, mas eu senti uma coisa
diferente: a contradição em forma de um calor desgraçado nos braços, pescoço e
costas. Arranquei o casaco, a blusa e me descobri até a cintura. E foi essa é a
imagem que criei, caro leitor: uma pessoa com pernas presas num cubo de gelo,
enquanto alguém aponta um secador de cabelo para sua nuca.
Eu degustava essa imagem e me dei conta de que tudo podia piorar.
E piorou. É o que chamam de inversão térmica da pessoa: meus pés descongelaram
repentinamente e começaram a arder, enquanto o congelamento atingia meus
braços. Passei os doze minutos seguintes retirando meias, descobrindo pés,
recolocando blusas e cobertas e realocando gatos.
Se fosse só isso, ok, mas não. O poço é fundo e o ridículo é
uma coisa que chega com força e fica especial sob o uivo de um vento horroroso
e um frio sem noção.
Olhei para minhas mãos, sempre transparentes e
fantasmagóricas, merecedoras do bullying da minha amada irmã. Elas estavam
roxas e meus dedos paralisaram numa espécie de curva. Assim como os dedos do
meu pé. Novamente congelados. Roxos também. Tudo isso enquanto minha cabeça,
meu tronco e minhas pernas se afundavam no calor.
Eu nem sei o que comentar de tudo isso. Me dá vontade de
chorar e rir. E de me cobrir seletivamente.
Há um ano minha vida virou do avesso. As contradições que eu
vivi nesse último ano me deixam tonta, mas sem labirintite (se bem que devo
estar entrando na idade disso também). Eu entrei no furacão, senti o impacto do
vento enquanto coisas eram arremessadas na minha cara, parei no centro e curti
uma calmaria relativa, que me deu uns minutos para respirar. Agora, que conheço
a força da tempestade e me preparo para sair, também preciso lidar com ondas de
frio e calor, roxas, brancas e congelantes.
Baita sacanagem.
Eu achei que era coisa da idade (nesse grupo mesmo tem um
monte de gente contando histórias sobre a velhice e me convencendo disso),
mas me enganei. Nessa fase da vida, não é coisa da idade, é mais contradição.
E eu, que achava saber o que era contradição, descobri que
agora contradição é coisa de outro nível. Um nível que nem sequer sei onde
fica.
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