ARAPUCAS >> André Ferrer

Naquela tarde, o tempo se arrastava na sala de Clara. O calor abafado fazia o ar vibrar, enquanto ela se remexia no sofá, inquieta. Como preencher as horas criando algo novo e significativo? Sua mente, contudo, parecia um emaranhado de ideias. Havia um desejo ardente por renovação. Havia o seu novelo de vontades grandiloquentes.

Estava de férias. Tinha muita liberdade, mas não sabia o que fazer. Exausta de tanto pensar, ejetou-se do sofá. Melhor abandonar a busca pela "obra perfeita". Lembrou-se, então, de que havia algo mais simples: molhar as plantas na varanda.

Com o regador nas mãos, Clara abriu a porta de vidro e deixou-se envolver pela brisa morna que circulava no alto. A visão lá de cima oferecia um retrato vívido da cidade em movimento: pessoas andando apressadas, carros enfileirados no semáforo, vozes esparsas ecoando, a cantoria dos pardais nas árvores abaixo. Tudo parecia igual, normal, comum.

IMAGEM: Gemini 2.0

No prédio da frente, um senhor de cabelos brancos apareceu e Clara viu que ele carregava algo parecido com uma gaiola. O velho colocou a pequena jaula no parapeito de sua sacada e puxou um dispositivo. Clara logo soube que se tratava de uma armadilha e observou-o enquanto se escondia e, em questão segundos, capturava um pássaro.

Fora do seu esconderijo, o velho pegou o animalzinho com toda a delicadeza e tocou as asas. Ele ficou parado na varanda por alguns minutos e acariciou a criatura. Então, examinou a ave pela última vez e abriu as mãos para que ela voasse de volta às copas das àrvores da rua. Cena curiosa, de fato, mas que não impactou Clara num primeiro momento.

No dia seguinte, contudo, o ritual se repetiu como um relógio que nunca se atrasa. Lá estava o velho, que preparou a sua arapuca e outro pássaro foi capturado e solto. Clara percebeu, então, que se tratava de um hábito — algo tão arraigado quanto tomar um café ou fumar um charuto. O velho alimentava uma tradição, todo santo dia, bem ali, do outro lado da rua.

Reflexiva, Clara admitiu que era incomum. Estava há anos naquele endereço, mas nunca tinha visto o caçador de pássaros. Ela só descobriu aquilo porque estava de férias. Do contrário, jamais presenciaria o fenômeno por tantos dias.

De repente, nada fazia sentido. O gesto do velho tinha uma doçura inesperada, mas encerrava uma estranha contradição. Ele parecia tão cuidadoso e afetuoso, que era difícil classificá-lo como alguém que fazia aquilo por crueldade. Ainda assim, Clara não conseguia afastar a sensação de que havia algo profundamente desnecessário naquela dinâmica. "Será mesmo preciso apanhá-los?", pensava. Por fim, ela desistiu de encontrar uma resposta racional e até mudou o horário de dar àgua às plantas.

Deitada no sofá — em mais uma daquelas tardes vazias —, a mulher percebeu que o seu tempo terminava. Era o último dia das suas férias.

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