OS BISCOITOS DO AMOR E DA MORTE >> Zoraya Cesar

 


As eleições estavam chegando e, com elas, as coisas de sempre: intrigas, fofocas, golpes baixos.

Seu Edworld aposentara há pouco e procurava ter o que fazer. Tentara caminhadas, jardinagem, encontros 60+, mas nada dera certo. As caminhadas eram tediosas; seu dedo era podre, não verde, tudo o que plantava morria; e as senhoras 60+ queriam homens 50-, e não 70 ladeira abaixo, como ele.

Estava ficando deprimido.

Quando surgiu a época das eleições para síndico, seus olhinhos de paçoca amassada brilharam. Isso! Iria concorrer. Podia não levar jeito para nada, mas, bem ou mal, de números e administração ele entendia. Um condomínio nada mais era que uma empresa que recebia créditos e gerava débitos, como todas as outras. Molezinha.

Molezinha... se não fosse o intragável Dr. Iovenild a querer, também ele, o status de maioral no condomínio.

E começou a guerra.

A guerra no whatsapp e também a guerra fria. Sendo o prédio ocupado majoritariamente – para não dizer inteiramente – por pessoas idosas, guerras nas redes sociais não levavam a grande coisa. Mas o ‘zap’, ah, o ‘zap’ pegava fogo.

- Tem morador que prega limpeza no prédio, mas deixa lixo na escada.

- Tem proprietário que reclama do barulho, mas, em vez de acertar o aparelho de surdez, fica ouvindo música de gosto duvidoso em altos brados.

- Tem quem incomode os vizinhos ligando máquina de lavar de madrugada.

- E tem quem deixe o cachorro latindo o dia inteiro.

- Tem gente que nem fala com os porteiros.

- E tem gente fofoqueira que fala demais com os porteiros.

E assim iam acusando um ao outro veladamente.

Aos poucos, as insinuações perderam seu caráter difuso, e passaram a ser um pouco mais sólidas (se verdadeiras ou falsas, não se sabe).

- Tem gente que quer se candidatar a um alto cargo nesse egrégio condomínio, mas nunca pagou a pensão devida à ex-esposa.

- Caros vizinhos, não votem em quem desrespeita a vaga da garagem e ainda estaciona mal.

- Como pode se candidatar quem burla o Fisco?

- O cargo de síndico é um dever social. Quem atrasa o condomínio não pode se candidatar. Quer somente se evadir de pagar a cota.

E por aí ia.

---

O Sr Edworld estava feliz. Na verdade, nunca fora tão feliz! Aquela guerra dera uma apimentada em sua vida monótona. E como uma coisa puxa a outra, como felicidade atrai felicidade... bem, na campanha, ele fazia corpo a corpo com os vizinhos. Principalmente as vizinhas, devo dizer.

E foi num fim de tarde que ele deu na porta de D. Muzinha, velha viúva de mais de um marido. D. Muzinha era mirradinha e encantadora, com seus olhinhos azuis, um dentinho faltando lá no fundo da arcada e seu inebriante cheiro de violetinhas amassadas. O cabelinho arrumadinho imaculavelmente branquinho. E um cheiro de biscoito assado que saía porta afora.

Ele pediu licença para recitar sua plataforma de candidato. Ela o ouviu enquanto lhe servia biscoitos.

E farelo aqui, farelo ali, leite quente pra lá, acabou que uma noite acabaram na cama. Não vou entrar na intimidade do casal, mas revelo algo importante: o corpo de D. Muzinha não era tão decrépito assim e a performance do Sr. Edworld era plenamente satisfatória. Nem ele entendia. Mas estava viciado naquelas visitas noturnas madruguentas e no corpo e nos biscoitos de D. Muzinha.

Sentia-se o próprio latin lover, um aventureiro, um jovem que desafiava as convenções e escalava muros para ver a amada. Esperava o prédio se aquietar. Esgueirava-se para não acender a luz automática dos corredores. Usava as escadas para não chamar o elevador. Sentia-se o máximo. Vivia perigosamente. Como não pensara nisso antes? Vida monótona era pros fracos.

Uma noite, em que o sexo foi especialmente grandioso, ele pegou na mão de D. Muzinha e suspirou:

- Eu te amo.

(Eu sei, ela pensa, sorrindo consigo mesma. Mas é até covardia, você não teve opção)

- Oh, querido, você tem de ganhar essa eleição.

---

Mas nem tudo que dá certo dá sempre certo e quem ganha é o Dr. Iovenild. E nosso amigo Edworld fica como subsíndico, devida à apertada diferença de votos.

O novo síndico, no entanto, não ficou muito tempo no cargo. Não ficou muito tempo sobre a Terra também.

Chamou todos os condôminos para uma festa no play, com muitos comes (macios, por causa das dentaduras) e bebes (sem álcool, para não haver consequências medicamentosas). E foi logo no primeiro gole de guaraná que ele ficou tonto, engasgou, caiu, morreu. De um ataque fulminante de qualquer coisa que ninguém soube o que era. Mas ali estava ele, mortinho da silva, dos santos, de souza.

Polícia, corpo de bombeiros, parentada da velharia, apareceu um bocado de gente que, tão logo a comida acabou, sumiu sem deixar rastros. No final das contas, a polícia fechou o caso, afinal, o Dr. Iovenild estava velho, acabara de passar por forte emoção, o coração não aguentou. A família se conformou, era mais fácil fazer o inventário e dividir logo os bens. Simples assim. Vida que segue.

E a vida seguiu, com o Sr. Edworld pimpão e serelepe com seu novo cargo, sua amante, sua vitória.

Foi madrugar na cama de D. Muzinha, mas nessa noite ele não se entusiasmou. Estava inebriado demais para qualquer coisa que não se felicitar pela grande virada da sorte que lhe permitira, enfim, alcançar tão almejado cargo. E não parava de falar. Da vitória, da sorte, dos grandes feitos que pretendia fazer como síndico.

Ao seu lado, quietinha, mumuzinha, violetinha, D. Muzinha olhava para o teto, um leve sorriso no canto da boca onde lhe faltava um dente.

Que otário. Pensa que foi sorte virar síndico. Pensa que é por seus próprios méritos que ficou viril.

Fui eu. Eu e meus biscoitos do amor e da morte.


Ninguém jamais saberá que Dr. Iovenild comeu um de meus biscoitos. Um chato que sempre me tratou como se eu fosse uma pobre alzheimerada. Cometeu o mesmo erro que meus maridos. E teve o mesmo fim.

Sorriu mais largamente, desligou o aparelho auditivo para não ficar ouvindo a lenga lenga do amante e ajeitou-se para dormir.

Se o querido Edworld começasse a faltar com seus deveres de amásio, se a trocasse por outra, ou se passasse a tratá-la com descaso, e não como parceira, bem...

Os próximos dias seriam decisivos. A sorte do Sr. Edworld estava lançada. Com cobertura, biscoito do amor. Com açúcar, biscoito da morte. Qual caberia ao querido Sr. Edworld?  

 

 

Comentários

Marcio disse…
Reza a lenda que Winston Churchill teria mantido um diálogo com Nancy Astor, no parlamento britânico, que teria sido mais ou menos assim:
Nancy Astor: - Se você fosse meu marido, colocaria veneno em seu café!
Winston Churchill: - Pois saiba que, se eu fosse seu marido, eu tomaria o café!
Nadia Coldebella disse…
Kkk. Amei comentário!
Nadia Coldebella disse…
Agora, dona Lady Killer, vc pode fazer um bom negócio e disponibilizar a receita desse biscoito, que tal? Muitas senhoras por aí agradecem.
branco disse…
Mais um bom conto seu. Apesar d'eu (essa foi sagaz) estar pensando em um processo contra a autora por velhofobia. E tenho dito!
Anônimo disse…
Amor custa caro, sob quaisquer pretexto e/ou circunstância! Todo CUIDADO é pouco!
Jander Minesso disse…
E se for um com cobertura e açúcar? Pelo menos ele morre feliz da vida.
(E obrigado pela frase “nem tudo que dá certo dá sempre certo. Maravilhosa.)
Ana Raja disse…
Receita valiosa! Muito bom, Zoraya.
Antonio Fernando disse…
Temporariamente ficarei sem comer biscoitos. Minha nutróloga já está sabendo e me mandou agradecer à Lady Killer

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