A NOITE DE 31 DE OUTUBRO PARA AMBASSAY LOM >> Zoraya Cesar


O cemitério estava animado. Ambassay Lom percorria as alamedas devagar, apreciando os diversos grupos espalhados por entre as tumbas e mausoléus. O ar estava denso de música, magia, encantamentos, rezas. Chão, túmulos e pedras estavam repletos de oferendas, cada uma mais linda que a outra. Havia alegria aqui, meditação ali, conversas animadas acolá. 

31 de outubro era o dia perfeito para o contato com os mortos, quando o véu que separa os mundos esvanece e torna mais tênues os canais por onde trafegam os que se foram. Dia propício para mandar para o Além os que ainda estão aqui...

Alguns preferem celebrar a Noite dos Mortos em bosques, até mesmo no quintal da casa ou no próprio apartamento. Mas o cemitério ainda era o lugar tradicional para a maioria. 

A noite estava colorida e a decoração, variada. Jack o’ lanterns, arruda, sal grosso, velas, muitas velas, principalmente pretas, vermelhas, brancas. Pentagramas, caldeirões, livros invocatórios. Muitos declamavam o Livro de São Cipriano. Também havia ossos de eletrocutados, olhos extirpados de assassinos mortos, dedos de alcaguete, línguas de caluniadores, coágulos de sangue de invejosos. E muito mais. 


Parou um momento para assistir, divertida, alguns esqueletos literalmente sacudindo os ossos ao som de um jazz sincopado e animado. Um fantasma passava entre os espaços vazios em lindos movimentos, enquanto um Pai de Santo de voz cavernosa declamava A Flauta Vértebra, de Maiakovski sob os olhares admirados de um pequeno ajuntamento de cadáveres recém-sepultos e do coveiro, encantado, pois era profundo admirador e conhecedor da obra do russo.

O cemitério era um lugar democrático: havia espaço para festividades de renovação e homenagem; para rituais de banimento e exorcismo; para celebrar a passagem das estações. Havia quem desse um rápido pulinho no Outro Mundo; quem aproveitasse a aura do momento para juntar ingredientes que serviriam para feitiços ao longo do ano; quem reaparecia só para matar saudades do mundo da terra; quem queria apenas falar com seus mortos ou consultar o Além. E quem se valia da fortíssima egrégora do dia para praticar Magia Negra.

Ela sentiu um vento quente no rosto. Ambassay Lom soube, na mesma hora, que o grupo de Encantadores de Almas e o de Desterradores de Extraviados estava por perto. Sentiu-se mais tranquila. Eles vigiavam para que, na medida do possível, os praticantes de Magia Negra não aproveitassem para manipular os mortos, obsediar os vivos, tumultuar o futuro. Nem roubar terra de cemitério para transformar pessoas em títeres inconscientes, chamar almas do Além e prendê-las aqui para servirem de escravas, ou permitir a libertação de almas contraventoras, espíritos do Mal, para que perturbassem os encarnados e atrapalhassem a missão dos Enviados da Luz, que tentavam, penosamente, manter um equilíbrio cósmico. 

De um lado, viu um bando de anciãos, longevos como o primeiro fratricídio, invocando as Fúrias da Vingança contra os criminosos. 

Passou por um Coven bastante animado. Formado só por mulheres, as bruxas dançavam em círculos entrelaçados, num complicado movimento espiral, os vestidos esvoaçando como nuvens multicores. Cantavam, riam, congraçavam. Algumas amigas e conhecidas de Ambassay Lom, acenaram e mandaram beijos felizes, convidando-a a entrar. 

Mas ela tinha outro propósito e continuou seu caminho. 

Viu, numa roda de umbandistas, médiuns conversando animadamente com Pretos Velhos, Exus, Pomba Giras, Boiadeiros. Ela sabia que aquela noite era a única em que as Entidades baixavam em suas próprias formas, sem precisar incorporar em humanos. Sabia, também, que depois de todo o conversê, eles se reuniriam em oração pela humanidade. Ela tinha um especial apreço por eles - sua Avó foi Rezadeira das mais competentes até o desencarne. 

Com o canto do olho, Ambassay Lom vislumbrou um homem de tez marmórea e seu cachorro de ossos brincando: ele tirava um dos ossos e  atirava para o cachorro pegar e voltar, latindo surdamente. Algumas ligações entre os donos e seus pets são eternas, suspirou.


Uma lápide adiante, Wiccans faziam rituais de fertilidade para a Mãe Terra, pedindo que o inverno no Hemisfério Norte não fosse rigoroso demais e que todos tivessem abrigo e comida. Pediam também pela conscientização da humanidade em cuidar do planeta. 

Estava quase chegando ao seu destino quando passou pelos Haitianos da Noite, praticantes de Voodoo Sagrado, maravilhosos para descobrir espíritos malignos e devolvê-los a quem os mandara (esse negócio de perdoar e mandar para a Luz não era com eles), libertando a vítima de terríveis destinos. Ela, pessoalmente, nunca tivera problemas com os Haitianos da Noite; ao contrário, sempre a ajudaram muito. Tanto eles quanto os Umbandistas aproveitavam os bons fluidos daquela noite para limpar o caminho das pessoas em geral e dos seus clientes em particular. 

Ambassay Lom deu mais uns passos e chegou. Estava ali apenas para homenagear seus mortos queridos, oferecer flores e frutos – que seus amigos Ciganos devolveriam à terra no dia seguinte, pois não aprovavam desperdícios – e conversar um pouco. Ela nunca se consultava ou pedia para ajudarem a resolver problemas terrenos. 

Curandeira que era, todo ano ajudava uma das Almas de seus antepassados a nunca mais voltar no dia 31, para que tivessem, realmente, a Paz Eterna. Os que voltavam eram apenas os que tinham missões a cumprir junto aos Guardiões da Luz. Ela nunca chorava nem se lamentava pela passagem de seus amados para a Outra Vida. Exercer o desapego era um desafio diário e Ambassay Lom não fugia aos desafios. Sempre dava início ao seu ritual tocando címbalos e recitando Eclesiastes 3:1-4:

“Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu.
Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou;
Tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derrubar, e tempo de edificar;
Tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de dançar”.

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Ao amanhecer, Ambassay Lom preparou-se para ir embora. Estava feliz. Cumprira sua missão de mandar algumas almas para a Luz, falara com seus mortos, matara saudades. E depois iria a uma festa onde saberia de todos os acontecimentos da noite (ouvira comentários que um grupo de dissidentes dos Haitianos da Noite conseguira roubar um cadáver e que integrantes dos Encantadores de Almas prenderam duas mulheres que tentavam invocar demônios). Queria saber de tudo! 

Antes de transpor o portão, Ambassay Lom pegou um punhado de terra, abençoou-o e esparramou-o de volta ao chão enquanto recitava "Porquanto és pó e em pó te tornarás".

E era bom, pensou, que assim fosse. Pois assim como havia o tempo de plantar e o tempo de colher, também havia o tempo de os mortos descansarem em paz. 

Partiu. Estava na hora de se aprontar para a outra festa. A da Vida.



"Porquanto és pó e em pó te tornarás". Gênesis 3:19 

Filme a dança dos esqueletos https://www.youtube.com/watch?v=XC49a_SBP8Y

Uma homenagem a todos nós que temos nossos Mortos. Que descansem em Paz.

Comentários

Érica disse…
"esse negócio de perdoar e mandar para a Luz não era com eles." Kkkk boa essa.
Gostei do final, porque ela vai festejar a vida. Essa é a melhor festa de todas! Mas até que essa festa dos mortos tava bem divertida hahaha
branco disse…
ótimo, muito melhor que ótimo, melhor até que excelente. essa crónica, passando pelas diversas visões de ultravida, o toque humorístico, o trecho um pouco mais "seu" (Zo : P - 11, L - 06), um ótimo mergulho, uma fantástica viagem que você nos proporcionou. Anawn observa e a Dama de Branco evoca. muito melhor até que muito melhor que excelente.
Clarisse Pacheco disse…
Eu que não conseguiria meditar numa festa dessas rsrsrs Adorei também a Silly Synphony
Albir disse…
Adorei o ecumenismo da festa. Bom que os vivos aprendessem.

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