O CORAL DO PEDRO >> Zoraya Cesar
A vida de Pedro não era das mais fáceis ou alegres. Sua timidez e fragilidade o tornavam alvo preferencial para temperamentos despóticos. E temperamentos despóticos não faltavam em sua vida.
Podíamos falar da infância, mas entremos direto na atualidade. A mulher de Pedro. Uma jararaca desleixada que lhe aplicara o falso golpe da barriga só para ter com quem casar e não ficar solteirona o resto da vida. (Secretamente, ninguém entendia como, em primeiro lugar, qualquer homem teria coragem de lhe dar um beijo, que dirá engravidá-la). Mas o fato é que casaram. Pronto. E quem casa quer casa. E a deles vivia imunda. Alberica – a falsa grávida agora esposa – além de não muito asseada, também não era chegada a uma cozinha: as refeições se restringiam a arroz e feijão. E olhe lá. Pedro não podia falar nada, nem sequer um ‘Mas, querida…” e lembrar que ele trabalhava o dia inteiro e ela não, que Alberica lhe gritava os maiores desaforos e impropérios. Ou se fazia de vítima daquele homem desalmado. De qualquer maneira, ele passava vergonha frente aos vizinhos. Quando a jabiraca estava de bom humor ou a fim de sexo, até que o tratava melhor um pouquinho. Pelo menos não o humilhava. Não tendo condições de se separar por não ter para onde ir, e temeroso da reação dos irmãos maus bofes dela, Pedro ia ficando.
Despóticos, também os havia no trabalho. A diretora do setor, uma criatura ainda mais irascível que Alberica, não perdia a oportunidade de espezinhá-lo. Os colegas, para não ficarem mal com a chefe, ou o ignoravam ou abusavam de sua timidez. Mas o salário era bom, o emprego era público, então, Pedro ia ficando.
Levava quase duas horas para ir ao trabalho e dele voltar. Almoçava e jantava todo dia o mesmo arroz com feijão, às vezes acompanhado de uma carne assada comprada no bar da esquina. O lar era frio. O trabalho, um sacrifício. Não tinha amigos. Não tinha perspectivas. A vida era um inferno. Mas Pedro ia ficando.
Pois tinha uma coisa que o salvava do tédio mortal. Uma coisa da qual se orgulhava. Sua única fonte de alegria. Era tocar e ensaiar no coral da igreja. (Mesmo sendo o ministro do sagrado local um aprendiz de déspota). Pedro tocava bem o violão que acompanhava sua voz encorpada e profunda. Dedicava-se a esse mister com mais afinco e amor que a qualquer outra coisa na vida.
Por isso sentiu uma dor no coração e quase desmaiou quando lhe comunicaram que, doravante, a honorabilíssima mãezinha do não menos honorável presbítero o acompanharia nos vocais. A respeitável genitora estava deprimida, o psiquiatra recomendara uma atividade lúdica. E o principal dirigente – mandatário, o deus - daquela comunidade religiosa tinha certeza de contar com a boa vontade de Pedro em ensaiar sua querida mãezinha.
Talvez uma hiena fosse mais agradável de ouvir que a voz da nefanda 'mãezinha'. |
A querida mãezinha era insuportável. Rabugenta, ignorante, soberba e, pior que tudo, para horror de Pedro, mais desafinada que uma hiena no cio. A dona daquele peito muxibento no qual sequer batia um coração acreditava ter uma voz lindíssima, que só precisava ser educada, e para isso Pedro estava ali, para dar um jeito.
Mas jeito não havia. Além de obtusa, a velhota era musicalmente surda: não diferenciava um dobre de finados de um allegro; os instrumentos iam para um lado, a voz dela ia para outro. Era teimosa também, recusava-se terminantemente a seguir as instruções de Pedro, que começava a sentir um desespero doentio. Sempre que a estrofe da música chegava ao fim, a digníssima progenitora do não menos digno ministro cismava em estender as notas, num ahhhh lá lá laaaaaaaaaaá que mais parecia o canto do cisne esganado e refogado. Alguns componentes do coral começaram a inventar doenças e compromissos inadiáveis para não comparecerem aos ensaios. Pedro passou a tomar calmantes. Via seu refúgio, sua razão de viver, desmoronar a cada grasnado emitido pela indefectível velha, que, ela sim, jamais faltava aos ensaios.
A 'abençoada' senhora conseguia ser
ainda pior que a personagem Florence.
Muito pior. Era o pesadelo
de qualquer coral.
Chegou o dia da grande apresentação, no principal culto da semana, no qual a respeitabilíssima progenitora do não menos respeitável pastor acompanharia o violão de Pedro. Nosso desventurado protagonista suava frio, e não suava em vão. A velha, entusiasmada com a ocasião, desafinou mais que o normal, trinou como um sabiá estertorando, solfejou arquejante, gorgolejou, racharia cristais se lá os houvesse. Defuntos levantariam a correr, estontecidos.
Um desastre.
Para a audiência, que a tudo ouvia com cara de quando-isso-vai-acabar-pelo-amor-de-Deus; para Pedro que, pensava, nunca mais seria chamado para cantar nem em enterro de surdos, que dirá reger um coral. Uma catástrofe. Menos para a nobilíssima mãezinha e para seu não menos nobre filho, que, embevecido, já pensava em fazer da provecta ascendente a cantora oficial dos cultos, talvez até desativasse o coral.
O som da hiena.
Um dos mais assustadores da natureza.
No entanto até uma hiena era mais agradável
que a excelentíssima mãe
do excelente ministro clerical.
O ofício (ou sacrifício...) finalmente, terminou, quase junto com o controle de Pedro. Mais um pouco e ele arrebentaria o violão na cabeça daquela desgraçada que, dia a dia, arruinava a única coisa lhe dava um sentido à existência.
Pedro escafedeu-se correndo, precisava se esconder, precisava sumir, precisava morrer.
Mais tarde, naquela noite mesmo, alguns fieis ligaram para contar a desgraça que abalara os alicerces do templo: a vetustíssima mãe do bem menos vetusto ministro rolara da escada e morrera. Ninguém a viu cair, um acidente, disseram. Culpa da forte emoção misturada com os remédios contra depressão, garantiam. Pelo menos morrera realizada, lamentava o inconsolável filho. Felizmente era rebento único, herdaria os não poucos bens da mãe. Isso sempre é um consolo. Pequeno, claro, frente ao amor filial que ele, garantia entre lágrimas, possuía.
Pedro desligou, sorriu, e perguntou algo à mulher. Ela, como sempre, respondeu-lhe atravessado. E, também como sempre, Pedro baixou a cabeça e... Não. Um instante. Quase me deixei levar pela habitualidade. Dessa vez ele a enfrentou, pegou-a pelo braço e disse "nunca mais fale assim comigo. E eu quero o meu jantar. Agora." Ela serviu. No dia seguinte, Pedro encarou a chefe abusada - que, como todo covarde, recuou ao encontrar resistência inesperada em alguém historicamente submisso - e enquadrou os colegas folgados.
Ele vencera a velhota dos infernos, a desafinada de Belzebu, a desmancha-corais do Estige, a estraga-ensaios da peste. A filha do Capeta.
Ele venceria qualquer um.
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Essa crônica faz parte do projeto Crônica de um ontem. Publicada em 20 junho 2014. Mas eu fiz umas pequenas alterações aqui e ali.
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Foto hiena
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Crocuta_crocuta.jpg
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/4/4b/Crocuta_crocuta.jpg
Ikiwaner / CC BY-SA (http://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0/)
Vídeo Florence, quem é essa mulher
https://youtu.be/BRJyS-FUOcM
Vídeo da hiena
https://www.youtube.com/watch?v=uawugcup22k&feature=youtu.be
Comentários
Boa sorte a Pedro, nesse momento de ressurreição, que ele não se torne o novo déspota...