SÉ. (A MORTE) >> Fred Fogaça

 


Hoje trago mais uma dessas coisas que escrevi a um tempo e tava aqui guardado. Gosto dessa Crônica e até fiz um vídeo dela (vou deixar no final). Espero que gostem.

 

Morri num domingo. Domingo de manhã quando me encontraram, e é aí que estava morto. Se eu morro, ninguém vê: então estou morto e vivo, segundo Schrödinger. Ninguém vê e eu estou no leste europeu, na Ásia, na Patagônia. Voltei à Rússia soviética. A identidade é um souvenir, lembrança do turismo na sociedade. Estive na sociedade e lembrei de você. Tira uma foto na sociedade, posta na Facebook e me marca. Morto ou vivo. O papel velho da minha identidade é o que sobrou da minha identidade. Souvenir do turismo, de quando estive em mim.

Se você nasce e ninguém vê você não existe, se você se sustenta na condição de ser humano não é o bastante pra existir. Pra existir tem que ser homem. Homem! Estar no mundo, ser o mundo, ser um indivíduo sujeito. Ser visto, registrado, catalogado, seguir os mecanismos. Ser engrenagem. Se você nasce e não existe, morre pra ninguém, então você morre em vão. 

Agora: Minha cabeça valesse mil dólares, vivo ou morto, faria a diferença mesmo assim, mesmo vivo e mesmo morto. Aí eu faria. Mas pra quem morre num domingo e só morre quando alguém vê: você sabe. Sabe bem e me conhece bem, me viu ali. Mas não queria minha cabeça viva ou morta.

     e o resto era silêncio, segundo Hamlet
     sempre foi, mas eu nunca li Shakespeare
     sempre fui o resto

O pior resto do melhor resto que você tinha. Aquele indigesto. Mas não importa. Não pra mim, que a vida era um cárcere me punindo ao silêncio, me fazendo vitima inevitável de autopiedade. Não pra mim, que era um resto de silêncio, que era o ultimo tempo da pausa, as ultimas notas do compasso. Pra mim? Não, pra mim não.

A vida era cárcere me punindo a ser suprimido em estatísticas. Me punindo a ser arte: não tenho condições financeiras de entrar no MASP às Terças. A vida era um cárcere de me eternizar em brometo de prata.

ou sensor cmos, full-frame
(caríssimo)
em folha fotográfica no fundo de lata furada.

A lata era de comida, mas a luz era boa, domingo de manhã. Golden hour. Era arte, era um dia bonito. Daí você vai pra missa, vai tomar sorvete, almoçar macarronada na sogra. Vai pra missa da tarde. Vai ver o padre, olhar estranho as pessoas, deixar as moedas que pesam na bolsa na cestinha de doação, vestir a roupa de ver Deus - agradecer talvez -  mas agora é tarde e você tem que ir, o resto do domingo te espera. O resto. Teu resto. Esse é barulho.

Não importa: eu era arte, eternizado, estetizado uma ultima vez e pra sempre, estampado em tela grande: capa de jornal nenhum. Suprimido como adição ínfima nas estatistas e ninguém usa além da terceira casa depois da vírgula. Não num domingo, não talvez de semana também, ninguém tem tempo pro que tem depois de terceiras casas. Ninguém que importa tem.

Você tem? Aposto que não, você não é nem acadêmico o bastante pra isso, eu te garanto. Não é. Você é medíocre

     Medíocre.
     Medíocre
     Medíocre
     Medíocre
     Medíocre
     Medíocre
     Medíocre
     Medíocre
     Medíocre
     Medíocre
     Medíocre
     Medíocre
     Medíocre
     Medíocre
     Medíocre
     Medíocre
Medíocre
     Medíocre
     Medíocre
     Medíocre

e domingo você volta. Eu não. Não mais.

Domingo não é dia de morrer mas eu não escolhi. Não escolhi a razão que morri. Fazia frio e eu não escolhi um dia de inverno. Eu: escolhi que não ia voltar pra casa aquele dia às seis da tarde.

Aquilo eu escolhi. Ah, se escolhi.

E ainda foi uma má escolha. O resto é consequência de que sou culpa e vítima. Equilibrado e sustentável. Mas uma análise crítica da subconsciência talvez me diria que não escolhi, segundo alguém. Pode escolher sua referencia confiável. Escolhe aí. Eu não escolhi e cai n'um domingo. Mas você pode escolher cair num domingo.
Cair:
feio,
com força,
do alto,
pra sempre,
medíocre.

Importa? Não.

Daí, nada mais importa. Não importa não, mas meu ossário é de um branco marfim, é de cor nobre. Isso eu vou dizer que escolhi e vão dizer que é bom gosto. Porque dizerem que é bom gosto é importante, são eles é que escolhem no fundo e então é importante que pensem bem. Nossa classificação de gostos nos classifica, segundo Bourdieu. Aí Importa - aí é que importa-  mas ninguém escolhe nada e eu particularmente nunca tive conhecimento o bastante pra fingir como vocês. Não tive, uma pena, não tive e não escolhi.
Uma pena.
Morri igual.

Vocês morrem empáticos: pedintes de atenção, trágicos, cheirando mal. Mas morrem ansiosos esperando alguma coisa. Se era a morte não dá tempo de ter certeza. Então morremos: sem escolher. Mas quando vocês morrem n'um domingo alguém chora, chora, chora sim e chora muito. Chora: mãe, irmã, namorada, amante.

Não.


Amante não, amante chora na calçada da frente pra dar escândalo. Ou não também, agora não tem mais nada à perder. Nadinha. Tudo o que ela tinha tá ali agora ó. Vai começar a apodrecer em uns três dias. Agora são só lembranças, uma lápide e a incerteza de um caixão guardado. Agora são só flores em dia de finados. Missa de sétimo dia. Foto no criado mudo, mas ainda tem os velhos vícios. A diferença é que o que você tem de ruim depois se torna heroico. O vício dos lordes é virtude, Victor Hugo testemunhou. Não é só álcool, não são só cigarros, agora é essência, é importância. É a lembrança que fica da sua presença vagando pela varanda de trás. Sem censura, sem reprovação.

A morte é isso que invalida as más intenções, Lins do Rego disse algo do tipo. José Lins do Rego é um dos grandes, então deve ser verdade. Também é o que legitima o choro dos amigos e do chefe por igual, lado a lado. Mas não a Amante, ela não, essa tem que seguir chorando na calçada. Só que na nossa falta de nobreza (inocente!) temos muita coisa em comum, eu não tinha nada à perder também e somos dois cumpridores de papeis sombrios da vivencia social. Existências oscilantes a puro rigor de equilíbrio.

Mas gente assim precisa existir até pra você ter o direito de ser tão ruim e tão mediocre.

Agora... agora! Quando eu morro n'um domingo alguém chora às estatísticas, sentado no couro caro. Se vocês morrem n'um domingo tem chá. Tem bolachas. Tem coroa de flores, flores de morto. Porque qualquer flor não basta. Vocês morrem com exigências. Tem carro de     som te exibindo pela cidade afora. Tem homenagem. Tem tudo. Até amante. Quando eu morro não tem cerimônia. Mas é aí que eu pego vocês no pulo.

morri escarnecendo, desejando hóstias e freiras
morri insultando seu deus na cara, com todas as forças
sem dar satisfação.
por que morri num domingo
na porta da igreja,
sem ter salvação.
 
  
O vídeo, a quem interessar possa uma versão diferente dessa Crônica:
 


Comentários

Zoraya Cesar disse…
Príncipe das Entrelinhas, esse texto foi profundamente perturbador. Ainda mais q acabei de ler esse último da Princesa das Palavras, entao estou mexida. Aí vem vc e me sacode de cabeça pra baixo.
ESPETÁCULO de texto.

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