A MULHER DA ÁRVORE - Parte 2 >>> Nádia Coldebella

FLORES DE LARANJEIRA


Domênico vinha sonhando com Vilma há sete dias, mas não levou a sério, até sua esposa Odete sonhar também. Então descobriu que há sete dias Vilma desaparecera...

- Hein?

- Uma tal de Vilma sumiu há sete dias - repetiu Antônio, bem vagarosamente. Geralmente o cabo era dessas criaturas que pareciam viver em um estado meditativo, quase num mundo paralelo. Dificilmente se sobressaltava, mais difícil ainda era -lo elevar o tom de voz. Mas a história de Domênico parecia ter atingido as raias do sobrenatural e ele não gostava de fantasmas. Antônio voltou os olhos ainda esbugalhados para o chefe e conteve a respiração quando o viu branco, pálido, misturado a parede. Parecia que ia ter um piripaque.

Como assim, a Vilma sumiu? - Agora o corpo de Domênico estava rígido e o coração queria sair pela boca - Será a mesma Vilma? - imagem da mulher apontando para a árvore estava fixada em sua retina desde o sonho da  madrugada e agora adquiria uma força excepcional. O homem apoiou as mãos sobre a mesa e permaneceu alguns segundos de cabeça baixa, balançando-a para lá e para cá, tentando afastar o que passava em sua mente. Levantou os olhos para o amigo. - Como isso é possível? Como isso é possível?

O soldado já tinha voltado ao estado zen de costume. Adiantou-se ao chefe aturdido e depositou um copo de água a sua frente. Sua voz era novamente de uma calma hipnótica.

- Senta, chefe. Melhor o senhor se acalmar. - Domênico sentou e ficou um tempo parado, imóvel, lutando para organizar o raciocínio. O cabo, porém, não suportou o silêncio. - Não acha melhor telefonar para Rio da Fortuna, sargento?

Rio da Fortuna era uma cidade de pequeno porte, com cerca de trinta mil habitantes, há 100 Km de Marés Pequenas. Mas nem Domênico era de Marés, nem Vilma era de Rio da Fortuna. Nasceram em Nova Semente, uma cidade bem a oeste de Marés. Moraram na mesma rua. Domênico era um pouco mais velho e gostava de jogar futebol com os irmãos da moça. Viu a menina crescer, magricela, arisca, com grandes olhos azuis, muito branca, cabelos ralos, eriçados e amarelos. Gostava de provocar, chamando-a de vizinha amarela - e ela detestava - mas, na  adolescência, numa dessas festinhas, ele ficou bem incomodado quando o Serginho chamou a magricela para dançar. 

Garantiu que a dança durasse apenas uma música e passou o resto da festa grudado nela - pra garantir que você continue uma moça direita, dizia. No fim da festa, levou-a para casa e no portão aconteceu o primeiro beijo. Ela tinha cheiro de flores, mas aquele havia sido um beijo estranho, ele pensou um tempo depois. E eles ficaram assim, meio enrolados, até Odete mudar-se para Nova Semente.  Domênico ficava muito sem graça quando via Odete, mas ela e Vilminha tinham-se tornado amigas. Ele ficou entre uma e outra, mas pouco tempo depois, foi Vilma quem pôs um ponto final na relação.

- Eu adoro você, Domênico, mas você é como um irmão para mim - Ela disse, aliviando o moço da culpa que sentia por querer ficar perto Odete. - Além disso, queremos coisas diferentes. - Depois de alguns blá-blá-blás, eles se abraçaram ternamente, num gesto de despedida. Antes de partir, a moça amarela ainda ajudou o coração de Domênico a ficar  feliz - Dá uma olhadinha pros lados, Domênico. A Odete gosta de você - Ele começou a namorar Odete dias depois e o namoro resultou em um longo casamento e dois filhos. 

O tempo garantiu que ele e Vilma se perdessem de vista. Ele até esqueceu dela. Mas agora, sentia-se angustiado com a ideia de que algo tivesse acontecido a ex-namorada. 

- Tem razão Antônio - ele disse, afastando-se das nostálgicas lembranças. - Vamos telefonar. 

Quem atendeu foi o sargento Maciel, um homem de fala pausada, monossilábica, de voz anasalada e cansativa.  O cabo Antônio entendeu que a mulher morava numa localidade interiorana, afastada do município, um lugar chamado Vila Pequena. O marido prestara queixa contra a esposa no posto policial da localidade no mesmo dia do desaparecimento, informando que ela saíra de casa e deixara a filha pequena sozinha. Não é costume se averiguar desaparecimentos no mesmo dia, mas em lugar pequeno todo mundo se conhece. E o policial, não tendo muita coisa para fazer, resolveu ir até a casa da família e bater umas fotos. Logo depois da ligação, Domênico recebeu as fotos pelo WhatsApp.

- É a Vilma mesmo. - Consternado, ele mostrou ao cabo a foto de uma mulher muito branca, com cabelos amarelos agora lisos e face bastante sofrida. - O marido contou ao Maciel que ela estava bem diferente, bem mais quieta e agressiva que o costume. Estão achando que ela fugiu com um amante. 

O cabo baixou a cabeça para esconder o riso e o pensamento. Será que pensaram que a mulher havia fugido com o sargento? Eles não tinham ideia de quem era o sargento!

Domênico olhou para outra foto. 

- Estranho...

Era a foto de uma lavanderia. O tanque estava cheio de roupas, a máquina estava ligada, no chão alguma água derramada e um chinelo azul virado para baixo. O outro chinelo não estava lá. A frente, quando a calçada da lavanderia acabava, começava uma terra  vermelha bem barrenta, sinalizando a forte chuva que havia caído naquele dia. Entre um tufo de grama aqui e outro ali, havia sinais no chão, como se alguém houvesse derrapado na lama. 

- Não é estranho, Antônio? Se ela fugiu porque deixou o tanque cheio e a máquina de lavar roupas ligada? E porque o marido não desligou a máquina? E cadê o outro chinelo? - O olhar aguçado do sargento movimentou-se rapidamente para outras fotos - Olha, casa arrumada, comida ainda quente no fogão, roupa no armário... isso não faz sentido.

Domênico fez novo silêncio. Em seguida, arrumou alguns itens numa bolsa e levantou-se;

- Vou para casa, cabo. Não me espere a tarde - A mente estava agitada e ele precisava dar um sentido a toda informação que recebera. 

Ao sair pela porta, uma brisa tocou seu rosto, trazendo um conhecido cheiro de flores. Flores de laranjeira. Não havia esse tipo de árvores por ali, só algumas que davam uma sombra mixuruca. O homem arrepiou-se dos pés a cabeça, ao reconhecer o perfume que a Vilminha usava na adolescência. 

Ao chegar em casa, contou tudo para Odete. Cuidou para que todos os detalhes ficassem evidentes, porque isso o ajudava a organizar as próprias ideias.  Pasma, tonta, zonza, atordoada, a esposa convenceu o marido de que, a tarde, ele deveria ir até Rio da Fortuna.


Continua...

leia a primeira parte aqui: A mulher da Árvore - Parte 01 

Imagem: Catrin Welz-Stein

Comentários

Albir disse…
Estou ficando com medo, Nádia! Mas vamos aguardar.
Zoraya Cesar disse…
Nádia! me deixou ansiosíssima! muiiito bom o suspense fantástico!
Selma Leão disse…
Que riqueza de detalhes! Ao ler, fiquei a imaginar as cenas, as pessoas... ansiosa para ler os próximos capítulos!
Também não vejo a hora de ler os próximos capítulos! Adorei a descrição de cada um dos personagens. Como a Selma, também imaginei direitinho as cenas e as pessoas!

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