O FEITIÇO MAIOR QUE O FEITICEIRO - 2a parte >> Zoraya Cesar


A velha feiticeira analisou a situação. O que Ilana pedia era sórdido. Exatamente o tipo de serviço que Tia Mormânt executava, com prazer e maestria. Para isto estava aqui há incontáveis e inacreditáveis anos: para apodrecer almas, destruir destinos, aprisionar espíritos na Terra e no Além-Vida. Para servir ao Mal. 

Vira um filme em que o Diabo dizia ser a vaidade seu pecado preferido. Não para Tia Mormânt. A inveja, esta sim, um pecado de respeito. Quanta gente ela já não corrompera instilando esse verme verde que se agarra insidiosamente nas entranhas da pessoa, a dominar seus pensamentos, sua consciência, seu ser.

Pedia altas somas por seus encantamentos, mas não trabalhava por dinheiro. Seu pagamento era o controle sobre a vontade e a Energia Divina dos envolvidos. Seu alimento era o terror e o sofrimento. Sua diversão era promover o caos e a destruição, entregar almas ao Inferno.

Tia Mormânt olhou Ilana com escárnio. Achava-a fraca e estúpida. Presa fácil. De qualquer forma, cumpriria o acordado. Assim estava escrito.

- A lei me obriga a dizer e eu digo: matar a mulher e dobrar a vontade do marido ao mesmo tempo é perigoso. Fica mais difícil controlar as variáveis. Não posso me responsabilizar. Se der errado, ainda assim você terá de me pagar.

- Quero essa vaca morta. Quero tudo dela no meu nome. AGORA. EU PAGO.

Tia Mormânt exultou, internamente. Era o que precisava ouvir.

- Se o encantamento der certo, você me dá seu útero. Se der errado, eu fico com sua... sanidade. – A velha apresentou um pergaminho sujo, fedendo a carvão queimado e mofo no qual fez Ilana cuspir, assinando, assim, o contrato. Ilana não se deu ao trabalho de ler. Sabia que não tinha alternativa. Envelhecia rapidamente, mal podia se olhar no espelho. A magia negra tem dessas coisas. Funciona. Mas exaure, inexoravelmente, a energia do praticante amador. Mais tarde pensaria num meio de renegociar. Ou tentaria passar a velha para trás. Ou usaria seus serviços para... Ilana devaneava, incoerente. 

A velha intuía-lhe os pensamentos, divertida. Destruiria uma família amorosa, ajudaria a matar uma inocente e talvez escravizasse o espírito flébil e perverso de Ilana. De uma maneira ou de outra, sairia ganhando. Como sempre.

Mas cumpriria o combinado. Era a lei. E nem mesmo Tia Mormânt, feiticeira que escapara ilesa da Terceira Guerra Angélica, protegida pelo Ducado da Escuridão, descumpriria a lei que regia os contratos mágicos.

Nas noites de Lua Nova, praticantes de Magia
de ambos os lados do Caminho
 lutam para fazer valer suas forças.

Numa noite de lua nova, enquanto o encantamento homicida era executado, o destino, ou o imponderável, ou os Anjos da Guarda, não sei, agiam. Pois mesmo no mundo espiritual a toda ação corresponde uma reação – não exatamente da mesma força ou em sentido contrário, afinal, não estamos falando do mundo físico. Mas uma força, todavia. 

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Em sua casa, a empregada, Nalva, ensimesmava-se. 

A esposa de Quirino sempre a tratara com carinho, como gente. Quando apanhou do ex-companheiro, a patroa consolou, chorou junto, pagou advogado. Nalva não era emotiva, religiosa, agnóstica, nem nada nem pelo contrário. Mas naquela noite de Lua Nova fez uma prece, pedindo por sua patroinha, pessoa tão boa e querida. 

Por aquelas coincidências que, dizem, e eu acredito, não existem, na mesma noite o enfeitiçado Quirino, bêbado, sofria. Metade de seu espírito queria transar com Ilana; metade de seu coração, ficar com a esposa. Uma hora queria desesperadamente casar com a amante; na outra, nem entendia por que tinha uma amante. 

Baco fez sua parte, e a consciência de Quirino, alterada pelo vinho, escapou do controle de Ilana por alguns instantes, o suficiente para lembrar-se da esposa, das risadas, da cumplicidade, do sexo... e do dia em que se beijaram pela primeira vez. Quirino chorou.

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Não sei se vocês sabem, mas a prece verdadeira feita em favor de outrem e a lágrima sincera estão entre os melhores corta-feitiços do mundo. A Legião de São Miguel na Terra despertou. À força maléfica de Ilana e da Tia Mormânt surgiu uma força contrária, plena de ira sagrada. O encantamento começou a quebrar.  

Tia Mormânt sentiu a mudança dos ventos e quem eram seus antagonistas. Poderia contra-atacar com todo seu poder e concluir a missão. Preferiu, no entanto, não correr riscos inúteis. A causa estava perdida. Tranquila por ter cumprido a lei, Tia Mormânt retirou-se do círculo mágico, soltou o animal que seria sacrificado, apagou o fogo cerimonial. Cantou as invocações de trás para frente, para desfazer o já feito. Não deixaria rastros. Deixaria, isso sim, Ilana entregue ao seu destino. Sorriu. Saíra ganhando. Mais uma vez. 

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(Todos gostam de um final fechado e, de preferência, feliz. Pois eu, sabendo a verdade, revelo-a a vocês. A lei manda e eu cumpro.

Pega em flagrante durante o ritual macabro – bebendo sangue de um animal vivo -, vendo seus planos fracassarem e abandonada pela velha feiticeira, Ilana surtou. Mesmo internada sob forte sedação, seus gritos ininterruptos gelam os ossos dos outros internos. Os médicos desconhecem a causa daqueles pesadelos. Se perguntassem à Tia Mormânt ela responderia que Ilana estava pagando uma dívida.. Mas quem, em sã consciência, perguntaria?

Quirino e a esposa estão felizes. Deixaram tudo para trás sem questionamentos. Nalva ficou aliviada e também feliz em ver sua patroa viva - e a odiosa D. Ilana derrotada para sempre. 

Nenhum deles jamais desconfiou do papel decisivo que suas ações tiveram na resolução daquela quase desgraça. Mas nós sabemos que, no mundo espiritual, a toda ação corresponde uma reação oposta de força...).

Mormânt* túmulo, em romeno

Ah, sim. Muitos de vocês devem estar estranhando Tia Mormânt, a vilã-mor, ter saído impune no final. Nem sempre a vitória do Bem é completa. Mas não se preocupem. A hora dela vai chegar. Um dia. Ou uma noite. De Lua Nova.















Comentários

Marcio disse…
Zoraya, a partir da leitura de seu texto, creio que o Procon deveria obrigar a inclusão de alguma advertência nos cartazes de "trago seu amor em três dias" e afins.
Veja só:"Ilana ignorava que, em contratos de Magia Negra, o cliente saía perdendo em algum momento. Sempre."
Resta caracterizada a hipossuficiência da consumidora. O contrato deve ser anulado.
Se o Procon fizesse seu trabalho como devido, certamente não haveria tanta demanda por serviços que só causam sofrimento alheio.

E, assumindo o risco de ser repetitivo, parabenizo mais uma vez a forma impecável de seu texto, o controle absoluto da atenção do leitor e o humor surpreendente, sobretudo no final. Se fosse impresso em papel, sugeriria separar o final fechado. quem quiser, que o leia. Quem preferir imaginar sua própria versão do desfecho, que fique à vontade.


branco disse…
a caneta desliza e sua tinta deixa uma marca de beleza e a ironia é que a beleza está, não apenas nas palavras, mas no espaço em branco entre elas, o que costumamos chamar de entrelinhas. se você queria fazer a beleza narrativa e conteúdo, encontrou.
Anônimo disse…
Realmente, sempre as forças das trevas tiram mais do que dão, mas como no começo são legais com os encarnados, tem sempre gente caindo nessa e procurando essa solução que a princípio parece fácil!
Comentário interessante sobre ter uma advertência do Procon nesses anúncios envolvendo magia negra! https://www.youtube.com/watch?v=msd3uEhBRgg
ah, cara, com Miguelito não se brinca!!!!!!!!!!

Clarisse Pacheco disse…
Bem-vinda de volta, minha querida! Delícia te ler de novo! Bjs
Márcia Bessa disse…
Minha querida Zo, amo seus textos, sempre muito coerentes. Esse em particular me encantou, a lei do retorno é algo que acredito piamente ! Beijos e sucesso.
Erica disse…
Adoro esses finais onde o bem vence o mal.
Ainda bem que li as duas partes de uma vez. Ficaria estressada de ter que esperar pelo desfecho na segunda kkk
Zoraya Cesar disse…
Marcio - vc mistura gentilezas com sua ironia fina. E eu me divirto imensamente. Além de ficar agradecida.

lord white - lord não apenas no nome. Até para comentar é com nobreza e sutileza. Envaideço.

Anônimo (e Marcio) - olha q vcs acabaram de me dar uma ideia... Sim, esse o encanto das forças do Mal, entregar fácil o que nem deveria ser entregue. E cobrar altíssimo.

Ana Luzia - exatamente!

Clarisse - obrigada, Amiga

Marcia - disse tudo! a lei do retorno tarda mas nao falha. Ao contrário da dos homens, que, qdo tarda, já é falha

Erica - hahahaha, eu sei q vc tem medinho desses

A todos, muito obrigada pela leitura e pelas gentilezas e comentários!
Sandra Modesto disse…
Fugiu do esperado. O inesperado é mais sedutor. Adorei demais! O texto, o jeito de narrar, amarrar os personagens. Parabéns! Mil vezes!
Albir disse…

Fico aqui, assustado, mas feliz de viajar de novo pelos seus mundos sobrenaturais.

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