carpinteiro / apenas um caso de rotina - parte I >>> branco
ato II
alguns anos antes
bem
meu pai era um carpinteiro
era triste como um revólver
teve 7 filhos e eu
o único que junta palavras
trabalhou durante 23 anos em uma carpintaria
até que o homem do escritório o despediu
passou um longo tempo
para que tudo voltasse ao nomal
mas antes disso esposa e filhos o chamaram
maldito !
meu pai e eu nos parecemos
ele o carpinteiro eu o seu filho
que senta-se ao seu lado esquerdo
durante as refeições
carpinteiro que caleja as mãos
poeta que caleja a mente
lembra-se meu pai de quando nós
ficávamos na beira da velha estrada?
ele contava histórias
eu os carros que passavam
agora ele conta os momentos
eu os calos em sua alma
ele acorda cedo e vai para a oficina
eu acordo tarde
e torno a juntar mais palavras
mas o seu - e o meu - trabalho são grãos
que escorrem pelos dedos
meu pai e eu nos parecemos
ele e seu martelo eu e meus grãos de palavras
ele fazendo mesas onde repousam meus papéis
até que tudo chegue a um final
ato III
45 anos...depois
de repente
vejo-me parado em frente à velha dutra
muitas coisas mudaram
a velha estrada
agora não existe mais
foi remodelada - várias pistas
novo asfalto -
os carros - outras marcas
outros modelos -
passam por mim em incrível velocidade
para onde eles vão
não sei
procuro por algo familiar
- e percebo -
que não existem coisas familiares
na velha - nova - estrada
mesmo os caminhões
- novos modelos
mais seguros maiores
reluzentes -
e as viações
muitas já não existem
e as que resistiram ao tempo
mudaram suas cores
passo a observar os caminhões e ônibus
- os carros agora
não me importam -
para onde eles vão
não sei
lembro-me de um velho e de um menino
que
sentados à beira desta mesma estrada
contavam histórias
contavam casos
contavam calos
contavam carros
duas vidas em uma
momentos de pequenas trocas
entre a sabedoria das eras
e a infância audaciosa
perdido nesta lembrança
que é quebrada pelo barulho de um motor diferente
repentinamente
vejo uma kombi
velha triste enferrujada
teimosamente lenta em meio ao transito rápido
-atrapalha
sem perceber -
para onde ela vai
não sei
a caminho de casa
passo pela velha praça - que está em reforma -
vejo o novo prédio que está sendo construído
- nunca mais a grande casa azul -
um bêbado precoce me olha
com seu olhar embotado
- mas de compreensão -
minha cabeça está vazia
esperando a hora de ir
para onde?
ilustração Ana Betsa
carpinteiro publicado originalmente no livro 7 (2010)
apenas um caso de rotina publicado originalmente no livro poemas de gaveta (2018)
já temos o quadro para as tragédias
Comentários
eu os carros que passavam
agora ele conta os momentos
eu os calos em sua alma"
Muito, muito emocionante mesmo. Como vc consegue? Parece que as palavras vão caindo do céu como flocos de neve, aleatoriamente, e, quando chegam ao chão, fazem um sentido poético, melancólico, atemporal.
Muito obrigada por esse momento.