NUM SÁBADO DE OUTONO >> Sergio Geia
Ela tinha um trabalho.
Com a retribuição desse trabalho pagava as contas, jantava fora, de vez em quando viajava, tomava uma taça de vinho em casa assistindo a La la land, ou Nasce uma estrela, ou Woody Allen, que ela adorava, renovava o guarda-roupa, pedia pizza, ou chinês, ou árabe, ou japonês, ou mexicano.
Ela tinha boa saúde.
Dormia bem, tinha apetite, não sentia dor. Esses componentes presentes em sua vida atestavam para ela que por dentro tudo ia bem. Além do mais, não tinha nenhum problema, desses graves, diagnosticado, não tinha AIDS, nem câncer, nem cardiopatias. Ia ao médico regularmente (embora os médicos tivessem abandonado o seu plano), fazia exames, musculação, corria, comia salada, frutas, deu até pra meditar.
Ela tinha amigos.
De vez em quando nos reuníamos pra beber, comer, jogar conversa fora, tínhamos um grupo no whatsapp pra bate-papo, trocar figurinhas, sempre nos comunicávamos sobre velório do pai de um, da mãe, da amiga de outros tempos, consolávamos, confraternizávamos, às vezes rolava um churrasco, feijoada, pizza.
Ela tinha um amor, embora não acreditasse no amor.
Explico.
Ela parecia não acreditar num tipo de amor. Às vezes falava: tudo depende de como se entende o amor; eu perguntava: e amor se entende? O “amor romântico” é um pedaço do amor: tem prazo. Amor romanesco, Sebastian e Mia, não, esse não é o verdadeiro amor. É ciclo, dizia.
Mas também ela não entendia, não tinha elementos para entender o que fosse o “verdadeiro amor”. Mas sentia, achava que sentia. Talvez o “amor verdadeiro” fosse chegar em casa, dar um beijo, perguntar oi, como foi o seu dia?, colocar os pratos na mesa, conversar, cotidiano sem glamour. Sentir o seu respirar ligado ao respirar do outro, o seu bater de coração ligado ao bater de coração do outro, o seu sorriso ligado ao sorriso do outro, a dor, a sua dor, a mesma do outro.
Então, olhando o vazio pela janela, ela fez uma recapitulação: tinha trabalho, saúde, amigos, e amor, tudo que o manual dizia que precisava para se ter uma vida feliz. Mas por quê?
Disse que foi num domingo. Ligou a televisão, abriu uma garrafa de vinho, abraçou o seu amor. Procurou “Meia-noite em Paris” para assistirem juntos. O filme conta passagens da vida de um jovem roteirista (Gil) em busca da fama. De férias com sua noiva (Inez), Gil sai sozinho a fim de explorar a cidade, quando acaba topando com grandes nomes das artes como Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway e Pablo Picasso, que o levam para uma viagem maravilhosa ao passado. Direção de Woody Allen, com Owen Wilson no papel de Gil e Rachel McAdams no papel de Inez.
Assistiu ao filme, emocionou-se, até comeu pizza depois. Mas não entendia o que aconteceu naquele dia — a fumaça fazendo uma espiral e descendo lentamente.
O sorriso de repente não era mais o mesmo. A felicidade não era mais a mesma. Foi dormir abraçada ao seu amor, partilhando de um sentimento rico e profundo, mas ainda assim, com todas essas lindezas proporcionadas por uma vida bonita, alguma coisa ausente a incomodava; incomodou.
Então, num gesto tresloucado, subiu pela janela e sem pensar muito, mergulhou no desenho circular esculpido pela fumaça que saía de seu cigarro.
E foi assim, num sábado lilás de outono — dizem que o outono é a mais melancólica das estações —, que ela se despediu da vida.
(Faz falta)
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