NÃO GOSTO DA POESIA >> Carla Dias
Não gosto da poesia, do seu cheiro ou do seu rancor. Desagradam-me as suas rebeldias, extasiadas diante da dor. Descabeladas pelos ventos do desejo esbaforido e redentor.
Ela é dona de um labirinto alimentado por dilemas, onde desaguam infinitos, tempestades e canções serenas. Age como se tudo coubesse, nas dobras das suas reticências.
Eu não gosto da poesia, de como ela escorre pelas línguas dos déspotas, dos sinceros e dos pesarosos, das crianças embrutecidas. De como ela se enrosca ao desalento, concedendo a ele honrarias. E a ele se oferece, com descaramento em agonia, alegando fazê-lo por pura falta de saída.
Ela é de mastigar a morte, enquanto gargalha abundantes rimas. Tem nada que a poesia não corte com a lâmina da vida. Ela gosta de dar fôlego à boa sorte e de conduzir a sinfonia das solidões implacáveis, do reviver despedidas.
Há dias em que sim, em outros, não. Há quando talvez, volte mais tarde. A poesia se afoga em vieses, debate-se em diversidade. Aprisiona sentimentos no abismo da saudade.
Não gosto da poesia e suas notáveis indecências, como a de correr mãos macias, pelas mágoas e suas saliências. De mergulhar dedos trementes na carne da benquerença, num revirar de silêncios quebrados pela aspereza da voz que lambe palavras com o erotismo das incertezas.
Eu não gosto da poesia, ela que me despe de um jeito meio anarquista em folia, a degustar o fardo do segredo. Fico solta e sem amparo, sem saber ao que pertenço. Dou de pertencer a quem chega, à ousadia dos devaneios. E às tantas histórias inspiradas pela poesia em desespero.
Imagem: Flying Fish © Herbert James Draper
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Comentários
De como ela se enrosca ao desalento, concedendo a ele honrarias. E a ele se oferece, com descaramento em agonia, alegando fazê-lo por pura falta de saída.
Carla, eu sei que estou me tornando repetitiva. É que me faltam palavras. Só me resta dizer: excepcional.
E agora, vejo, feliz, que uma das frases que em impactou atropelou o branco também. É muito assombramento para um domingo só. Muito obrigada!
Albir, isso mesmo... a poesia vicia, porque aborda a vida com a profundidade necessária. Beijos.