ABORDAGEM >> Albir José Inácio da Silva


                                                                

- Responder eu respondo, moça, mas já respondi muito disso. Vocês perdem esse papel, é?

- Dasdô.

- É, Maria das Dores.

- De quê, eu não sei não. Antigamente eu sabia, quando eu tinha certidão e alguém lia, tinha mais nome. Mas agora eu não sei mais não. A bolsa de documento foi na enchente. Documento e retrato.

- Viemos de longe, viemos fugido, eu mais o finado. Eu se perdi com ele. Meu pai quase me aleijou e queria matar o Serafim. A gente veio pro Rio.

- Chegamos ali pra cima, olha, aonde tem aquele mirante. A senhora consegue ver com esse óculos preto? Agora é um clube, mas na época só tinha barraco. Aí disseram que tinha dono aquela pirambeira, que tava escrito no cartório. Depois que a gente foi expulso, nunca mais voltei lá. Diz que agora tem que pagar pra olhar lá de cima.

- Serafim morreu de tiro. Procurou trabalho a vida inteira. Fazia biscate, catava lata, home bom, não fumava nem bebia. Um dia mandaram ele trazer coisa no carrinho. Ele disse que não porque se a polícia pega nunca mais sai da cadeia. E foi descendo. Levou um tiro nas costas que fez um rombo no peito. Acho que ele nem sabe que morreu.

- Ora, Dona, mas que pergunta! Eu peço pelas crianças, que por mim eu nem comia. Tivesse um lugar pra eles, eu já sumia no mundo.

- Uma vez trabalhei numa casa de madame. Fui com duas crianças, que eu não tinha onde deixar, e botei sentadinho enquanto arrumava a casa. A Dona me pagou o dia, mas disse pra não voltar mais porque ela morria de pena das crianças. Ninguém gosta de mulher com filho.

- Três que tão vivo, mas era nove. Dos outros seis eu tinha retrato na bolsa que a enxurrada levou. Fiquei só com esses aqui que Deus quis que vivesse. Deus sabe o que faz. Mas não gosto de falar disso não.

- Ora, Dona, morreram de muita coisa. Mas eu não gosto de falar disso, não.

- Não, moça, eu não vou porque já fui e já fugi. Todo mundo foge. Se fosse bom ninguém fugia de lá.

- Não vou porque não gostam de gente. Só querem limpar as calçadas de gente encardida assim que nem nós.

Moça, a senhora já foi lá? Eles reclamam o tempo todo. Tudo que a gente faz tá errado, a gente não sabe cuidar de filho, não sabe comer, não sabe tomar banho. Faz cara feia, ralha o tempo todo com as crianças. Na rua elas ficam mais alegrinhas.

- E o que que o juiz tem com isso. Os menino não são meus? O juiz dá alguma coisa pra eles. Pra que ele quer os meus filho?

- É outro abrigo?

- A gente escutando a senhora assim, dá até vontade acreditar. Por esses menino que sobraram eu faço qualquer coisa.

- Vai ter escola? Tem médico pro pé do Dico? Ele manca assim desde que caiu no bueiro.

- E tem sapato pra Lena? Menina tem vergonha do pé no chão!

- Tira esse óculos preto, Dona, pra eu ver seus olho.

- Tá bom! Eu vou.

Comentários

Luiz Silva disse…
Há grupos de pessoas as quais não se fala, a menos em campanha eleitoral. Que preciosidade de texto. Eu sei bem o que é não existir, não ser visto nem lembrado.
branco disse…
o anonimato conveniente
Zoraya Cesar disse…
Que beleza de crônica, Albir. A gente teria q ler todo dia, pra nao deixar a casca da insensibilidade tomar conta da nossa vida. Pq o q os olhos não veem, o coração nao sente.
Carla Dias disse…
Albir, que lindeza de texto. Há tanta tristeza, tanto afeto, tanta vida.

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