ERIÇAR-SE >> Carla Dias >>



Mesmo ela passando um corretivo no moleque, enquanto ele explica os fatos à moleca, há apreço ali, pode acreditar. Ele está no tom que torna as palavras duras uma lição exigida pela situação vigente, não uma violência. Uma urgência no ensinamento, para que aquelas crianças, que passaram do limite, compreendam que suas escolhas farão diferença logo mais, quando as brincadeiras forem substituídas por buscas, projetos, desejos, conquistas e desapontamentos. 


Os desapontamentos pontuam tudo, especialmente o aprendizado, na multiplicidade de suas camadas.

A cara carrancuda, a voz encrespada, as palavras agrupadas na construção de um discurso formal. Ela ajeita o coque, porque tem horror ao que está fora do lugar. Ajeita a saia, passa as mãos na barra do casaco, desfazendo uma dobra inadequada. Há quem pague muito para poder escutá-la desfiar impressões sobre o assunto. Há quem a considere uma conhecedora profunda do apreço. O que não sabem é que ela raramente o vivencia, que nela mora um medo vigoroso de não saber levá-lo à prática. Melhor evitá-lo, ainda que ganhando a vida com ele. 

Que os outros mergulhem no apreço, enquanto ela joga a boia para que eles não se afoguem. 

Leu que Júpiter Retrógrado em Sagitário não precisa ser assustador, e, mesmo não compreendendo o que é um planeta retrógrado, acalmou-se, como há tempos não se acalmava. Como se seu ser se acomodasse no corpo, depois de uma viagem atribulada. Pela primeira vez, em muito tempo, alguém disse que algo não era assustador, e que tudo bem sentir alívio. Foi assim que entendeu o recado. Assim que o aceitou. 

Apreço por si em tempos de Júpiter Retrógado em Sagitário.

Disseram que não havia jeito, nascera para ser bem menos. Questionou-se sobre o que seria ser bem mais, porque assim entenderia com certa propriedade o bem menos. Deu-se conta de que não era bem menos, mas havia sim momentos em que se sentia menos, depois de elucidarem – palavras, caras e bocas para ilustrar – que a sua existência era ínfima no quesito importância. Assim, em uma quase catedrática elucidação, explicaram-lhe o que importava e se deu conta de que muito do que importava não lhe importava. Sorriu o sorriso de quem não quer se aprofundar na conversa e saiu de cena.

Ausentar-se é um apreço necessitado de amparo.

Esconde-se na rotina. Há dias em que amansa, de jeito a quase declarar sumiço. Porém, volta à vida em um susto, recuperando-se em uma gargalhada vibrante. Mascara-se de nomes, reveste-se de sobrenomes, mas ainda assim: apreço. Apesar dos espelhos dos quais foge, das nuanças que renega, ele existe perpetuando umas e outras insanidades. 

Alimenta indecências, como se não tivesse nada a ver com o feito. Sentir apreço é um deleitável rompimento com o óbvio. E damos de explorar nuanças, de encarar reveses, de encharcar silêncio com declarações afetivas, travestidas de conversa fiada. 

O apreço tem seu vocabulário. Acontece de ele se deitar na terra das esperanças perdidas, devolvendo a elas o fôlego. De eriçar-se, até quando nos braços melancolia. 


Imagem: Judith © Francis Picabia

carladias.com
talhe.blogspot.com

Comentários

branco disse…
ainda não decidi em qual ponto você foi mais tocante. penso que vou me decidir pelo todo.
Carla Dias disse…
Ah, Branco, obrigada... de todo.
Zoraya Cesar disse…
Ausentar-se é um apreço necessitado de amparo.Carla Princesa do Lirismo Dias.
Carla Dias disse…
Zoraya, a gentileza em pessoa. :) Beijo e obrigada.

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