SEXTA-FEIRA SANTA >> Sergio Geia
Ouvia-a tão nítida que chegou até mim, acreditem, a voz afinada de Silvia Mariotto, de Bia, de Nazinha, de Dona Sinfa, de minha mãe, das tias Dayse e Marilia. O velho cântico tão conhecido no mundo religioso despertava eternidades:
“Pela Virgem Dolorosa, Vossa Mãe tão piedosa, perdoai, ó meu Jesus, perdoai, ó meu Jesus”.
Hoje é Sexta-Feira Santa. Eu caminho no início da manhã pela Santa Teresinha.
Mas não foram apenas o dia e o local que despertaram em mim tão boas lembranças.
O céu é tão azul quanto aquela manhã de 1987. Parece recém-pintado, como sempre ouço Caio dizer, de tão limpo, de tão forte e tamanho brilho esse azul. Há uma leve brisa que vez em quando toca o rosto. É bom sentir tudo isso outra vez. E há silêncio, como se o mundo inteiro congelasse à espera da voz sempre grave do narrador.
Mas não é só isso.
Há um pequeno grupo de jovens na frente da igreja. Eles conversam animadamente. Aos poucos, vão chegando outros jovens e o grupo vai crescendo.
Eu não era um bom ator, mas naquela manhã de 1987, Sexta-Feira Santa, eu e mais alguns amigos encenávamos a Paixão e Morte de Cristo. Tinha 18 anos. Era também uma manhã de abril, 17/04, de céu azul recém-pintado, de brisa suave, o mundo congelado naquela praça.
Posteriormente, criamos uma peça mais requintada, com falas, música, luz e tudo que um bom teatro merece. Mas aquele 1987 era o primeiro, uma narrativa simples da história. Nós, jovens do JUST, o grupo da comunidade, ilustrávamos a fala do narrador, seu Nenê, da banca de jornal, com pequenos gestos e movimentos de boca.
Lembro que fiz o sacerdote; depois, corri, troquei de roupa e virei João, para abraçar a doce Maria durante a via crucis, interpretada pela Sandra.
As estações iam sendo revisitadas e, a cada nova estação, o coral entoava a velha canção:
“Pela Virgem Dolorosa, Vossa Mãe tão piedosa, perdoai, ó meu Jesus, perdoai, ó meu Jesus”.
Paulo Castilho fazia Jesus; Fabinho Monteiro, saudoso amigo que precocemente nos deixou, era o Barrabás. Darci, Pôncio Pilatos. E a turma era da pesada: Sandra, Armando, Benê, Dora, Edmar, Fabio Castilho, Custódio, Erinelto, Alexandre, Sandro, Milton, Marli, Ondina, Vera, Carmem, Jaqueline, Herondina, Katia, Selma.
Camadas de imagens vão se sobrepondo uma a outra, lembranças esquecidas, coisas arquivadas no fundo de uma memória empoeirada, que acariciam eternidades, aceleram o coração, enchem de brilho olhos marejados.
Imagino que o grupo de jovens que se reúne em frente à igreja deva ser o novo JUST, que acerta os últimos detalhes da apresentação de hoje. Deve haver um ensaio geral. Desejo ficar para o ensaio, mas não fico.
Volto pra casa, a cada passo na calçada da Professor Moreira uma lembrança se espraia. Passo na frente da casa do Branco, penso em parar, acordá-lo, dividir eternidades, ouvir suas palavras em poesia, mas sigo em frente. No peito, saudades de um tempo bom que ficou pra trás.
P.S.: 1. Se você deseja sentir mais um pouco tudo isso de que falei, acesse o YouTube https://youtu.be/OhGc9iSvrtw aí embaixo. Você não vai acreditar, mas essa manhã de 1987 está registrada lá, pela filmadora hábil do Fábio, filho de dona Sinfa (não tenho certeza, mas acho que era o Fábio). 2. O filme, em razão do tempo, não é lá essas coisas, mas se trata de um registro histórico fabuloso (você enxerga o parquinho no centro da praça Santa Teresinha, no local em que funcionou nos primórdios uma cadeia). 3. Detalhe: o figurino é de chorar, mas era um tempo simples, de poucos recursos e muita vontade de fazer as coisas. 4. O céu agora está branco, o azul simplesmente desapareceu. Talvez estivesse aqui nas primeiras horas apenas para me fazer acariciar lembranças e escrever essa crônica.
Comentários
ps.: sorte que não parou em casa, não que sua presença seja dispensável, pelo contrário, será sempre bem vindo, mas se perderia todo o encanto da crônica de hoje, e isso sim, seria imperdoável.
Darci: você fez parte de tudo isso; muitos pedem um encontro; vamos preparar.
Amiga: obrigado pelas palavras; foi um período mágico.
Zoraya: que delícia de comentário. Nossa, me inundou agora de alegria. Muitos me pediam para escrever alguma coisa sobre aquele tempo. Mas não é assim, simplesmente escrever. Crônicas memorialísticas desse gênero, eu preciso de algo mais, um olhar, um sorriso, uma música, uma emoção. Na última sexta-feira santa senti essa emoção ao caminhar pela praça; mexeu lá dentro, a coisa começou a sair, aí a gente senta e escreve. Beijo e gratidão mil pelas palavras.