O ESPELHO DAS QUATRO >> Fred Fogaça


Quando finalmente ficamos sozinhos eu e ele, ainda na crueza do dia, quatro da manhã, ele, saindo do seu canto e ainda a sono lento e me olhando, desde a sua pequeneza não muito consciente, de olhos todo atenção e as orelhas pontudas em pé, feito antenas, pra não perder um gesto meu, deixar passar um som da minha boca: sem entender palavra - acredito não ser versado em línguas - me olhou na profundidade da expressão e, aí a importância da expressão e, eu de significar. Nossa! Todo prontidão aos meus comandos: é, somos só eu e você agora - ele me entendeu - a hipótese da noite são maus sonhos, minha criança.

Queria até poder não dar explicações, não as cobrasse eu mesmo, não fingisse na minha cabeça treinar desculpas pra se alguém me perguntasse mas eu, é, eu mesmo, não quisesse me convencer de que tudo isso que eu fiz tem algum sentido; que eu não me arrependo; que eu só não fui trouxa e resguardei às excentricidades, o que na verdade é egoismo e imoralidade; eu sei de tudo, minha vaidade toda foi por terra e eu sei, sei qu'eu sou todo faltas, que sou todo as exceções do meus conselhos e te juro - juro - que tentei dar as exceções como conselho. 

Agora, velho amigo, eu disse, a que ponto chegamos? Eu insisto: quando é que as migalhas de marcar o caminho se tornaram a nossa última opção? Tínhamos tudo em mãos, meu caro, zombávamos das existências pobres, solitárias na extravagância que elas representam e agora, e agora? Nos abandonamos à nossa sorte pouca, eu disse e você me olha, assim, olhos todo de me consumir as forças. É, eu sei. Não posso mais falar por nós. Eu não te culpo, você foi quem sobrou são sobre esse teto baixo, mas onde foi que nos perdemos?

Tá tudo aqui, é tudo agora e parece, de repente, tão urgente, que vou sofrer de todas as dores até morrer de todas as maneiras mas o céu, o céu escorre como se infinitas camadas estivessem à espera pra escorrer também. As plantas na sacada vão e vem com as folhas, eu vejo pela porta entre-aberta, excepcionalmente segura essa noite que os mosquitos se aquietaram sem valentia e, o tapete a muito sem lavar dança a sujeira pela superfície sem sujar o chão em volta e a mobília, a mobília agora comigo de volta, atenta como ele, espera, aguardando de mim seja lá o que, sua suspensão na minha cabeça não é inerte por que só a minha imagem no espelho é que estanca. Eu sei que eu não posso voltar atrás. Eu estou aqui e é difícil dizer, é difícil estar mas, mas minhas fingições não me comovem mais: toda a minha verdade cabe numa fresta. Eu estou, mas a decisão ainda é toda minha, mas... ainda são quatro da manhã

e eu preciso muito dormir.

Foto:Veneza, 2014, autoria própria. 

Comentários

Zoraya Cesar disse…
Fred, acho q essa é a pergunta mais cruel que nos fazemos e insistimos em fazer mesmo assim, para, quem sabe, dar um sentido à próxima vez: onde foi que nos perdemos? Lindo texto de apertar o coração.
branco disse…
muito, mas muito bom mesmo!
Cristiana Moura disse…
Fred, nem sei dizer. é muito, muito bom. Eu me vi nesta madrugada, nessa pergunta: onde foi que nos perdemos?
sergio geia disse…
Sem palavras, Fred; impressionante o seu estilo.
Carla Dias disse…
Lindeza de texto, Fred. Apeguei-me de um tudo ao "sei qu'eu sou todo faltas, que sou todo as exceções do meus conselhos e te juro - juro - que tentei dar as exceções como conselho." As tentativas...
Unknown disse…
Grato as observações! Muito bom saber que gostaram e se identificaram.
Jefferson Celorio disse…
Gostei muito.

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