A VALSA >> Carla Dias >>
Na prática, não importa o que se passa com seu companheiro de viagem, esse senhor sentado ao seu lado, que pigarreia alguma doença crônica.
Quanto tempo até o destino? Vinte e sete minutos.
Não importa se o motorista do ônibus está de coração partido, graças a uma aventura que ele jurava que era amor para toda a vida. Não interessa se a menina, dois bancos à frente, deslizou a mãozinha para dentro da bolsa da mãe e afanou uma bala. E a mãe, anestesiada pelo cansaço, nem percebeu a filha a chupar um antiespasmódico.
A vida o conduz nessa valsa insana: faltas, pequenos abismos, delírios provocados pelo desespero. O conduz, um dançarino sem talento, a trançar pernas e a pisar nos pés da esperança.
Esperança também era nome... de quem? Ah, sua bisavó. Pessoa desprovida de gentileza, com quem conviveu por alguns anos. Uma bisavó chamada Esperança, que o levou à compreensão de que a esperança é uma desqualificada, que pensa somente nela mesma e se diverte com o desejo daqueles que nela acreditam. Eventualmente, ele voltou para a versão em que a esperança é uma necessidade para sobreviventes.
Tem evitado acreditar no que seja. Assim, até que chegam a ele algumas surpresas.
Não importa se a chuva encharca o lá fora, e que as janelas embaçadas comprovem o medo que temos de nos molhar. Ele se molharia, não fosse único o exemplar desse terno de terceira, quarta mão, remendado por costureiras-amantes, a lhe cobrir o corpo esquelético de tristeza e fome.
Ainda sonha em encontrar alguém que lhe guie na gentileza do sentimento. Com quem possa gastar horas a conversar sobre tudo o que não importa, até mergulharem nas importâncias e lá se perderem, um na companhia do outro. Com quem as brigas não sejam as sem volta. Alguém com quem dançar a valsa das descobertas, das delícias, da superação diária do sentir-se quem não importa. Um número em diversas estatísticas. Um eu nas inúmeras filas da rotina. A conta que não bate, já na boca do caixa do supermercado.
Não importa que ele esteja apreensivo com o que virá. O que virá acontecerá sem a sua permissão ou intromissão. Seu companheiro de viagem terá de lidar com suas questões de saúde. O motorista terá de chorar a saudade. A mãe se dará conta de que falta um comprimido na cartela.
A valsa continuará a das insanas e a esperança ainda remeterá a uma pessoa que ele nunca conseguiu amar, por falta de atributos que inspirassem amor. Laços de sangue são frágeis, como são qualquer laço que estabeleça conexão entre as pessoas. É trabalho contínuo fortalecê-lo.
Não importam o tempo, os remendos que ele causa no seu espírito, os fiéis contratempos e desilusões. Sonha a esperança de, quem sabe, vir a importar o suficiente para ser tocado, ainda que de leve, pela felicidade de valsar amor correspondido.
Afinal de contas, amar é o jeito dele de enfrentar e enfeitar precipícios.
Imagem: A Valsa. Escultura © Camille Claudel. Foto © Pierre André
Comentários
Obrigada, minha cara. Fico sempre sem saber o que dizer para lhe agradecer as palavras e o carinho com meus escritos. Beijos.