APESAR DA IRONIA >> Carla Dias >>


Notícias sobre política, violência urbana, malabarismos marqueteiros e várias versões a respeito das mulheres de Aleppo. Das meninas de Aleppo. Das pessoas de Aleppo.

Há cinco minutos, o destaque era a fragilidade da pele diante das tatuagens. Não tatuem em locais inclinados à flacidez, se não quiserem que a tatuagem se torne outra coisa com o tempo.

O tempo.

Às vezes, o tempo transforma para melhor.

Aniversário de querido alguém que já não está aqui, celebra-se a vida diante da ausência irrevogável. A sensação de impotência - que nos faz engolir o fato de que nem sempre podemos mudar isso e aquilo - toma o dia. Ainda assim - apesar do peso da morte -, ainda é a vida que desvela belezas e preciosidades. As lembranças - esse livro de recortes da vida que mora dentro da gente - são fortes e trazem momentos de alegria.

É permitido sorrir e sentir alegria por tudo o que foi vivido com a pessoa que partiu.

Os barulhos de carros, de gritos vindos do bar, entoados por bêbados matutinos, contando histórias desconexas que, certamente, fazem sentido para alguém. Barulho de caminhões de entrega de comidas que muitos não podem comprar. Comidas superfaturadas em época de recessão, quando às portas dos supermercados praticamente moram aqueles que aceitam qualquer pacote de bolacha.

Vigarista-guru que jura pelos deuses que pode fazer uma bela manutenção em seu espírito, e que, durante o horário comercial, é funcionário qualificado de agência de publicidade. Ele alega aos meios de comunicação que o endeusam – nada como vigarista-guru bom de lábia e em tempos de escassez de fé no homem -  que o pior já passou. Agora é questão de aceitar isso e trabalhar arduamente para melhorar de vida.

Mas a vida segue complicada, com o mundo abarcando insanidades diversas. E aquele cliente do vigarista-guru, que se consultou há mais de ano, pagando a consulta com seus últimos míseros dinheiros do mês, ele continua trabalhando feito escravo para viver com menos do que o necessário. Às vezes, ele grita em silêncio, para não acordar as crianças que foram para a cama com o estômago vazio. Dormir é melhor... É melhor.

A mulher que pede ajuda para ler o preço da carne na bandeja, diz ao estranho no supermercado que esqueceu os óculos. No carrinho, uma criança inquieta. Depois de saber o preço, pergunta quanto sobraria de troco se ela pagasse com uma nota de vinte reais. Porque também não está com cabeça para contas, pois perdeu a mãe no dia anterior. O estranho se compadece, sente vontade de se sentar no corredor de carnes e chorar pela mãe da desconhecida. Diz que sente muito pela perda dela e cada um segue pelo seu corredor.

México, Síria, Alemanha, Turquia, Rússia, Brasil...

Muitos dizem por aí que o pior do mundo é o ser humano. Ironia ou esperança saber que também o ser humano é o responsável por muitas belezas, alegrias, descobertas importantes, gestos louváveis. Talvez os sábios de botequim, assim como religiosos e políticos que trabalham em prol de si mesmos, devessem repensar seus feitos e se calarem e retirarem por conta. Os deuses devem estar exaustos de levarem a culpa pelos seus erros, assim como o povo.

O que sei, como espectadora da vida, um desses seres humanos com habilidade para o bem e para o questionável, é que sempre me apegarei à esperança, em vez da ironia. Considerem-me ingênua, não me importo. Ainda acredito que o melhor do mundo é o ser humano. Claro que esse melhor não é travestido de perfeição. É um melhor diante das intempéries e da crueldade. É um melhor que encara o pior, diariamente, e ainda assim, sobrevive.

Comentários

Albir disse…
Carla, esse foi um ano difícil pra humanidade. E, com relação às notícias, acho que a palavra do ano, segundo a Oxford, diz tudo: pós-verdade.
Carla Dias disse…
Albir, já entramos em outro ano e a dificuldade continua. Espero que isso melhore, antes que muitos desistam da própria capacidade de fazer o bem. Beijo.

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