VIZINHA CABELEIREIRA >> Sergio Geia
Descobri uma vizinha cabeleireira. Da
janela do quarto a observo: ela arruma a tralha na sacada e, enquanto arruma,
conversa com alguém na sala; de repente, esse alguém, uma mulher setentona, se
senta, e ela começa a trabalhar.
Vai cortando; noto que fuma também;
corta e fuma. E fala. Percebo que mais fuma que corta; mais fala que fuma.
Cabeleireira parece tudo igual: gosta de conversar e de fumar. Eu tinha uma que
conversava bastante; e fumava. Adorava falar de novelas, dos filhos, dos
estudos e projetos; o tempo de corte dobrava de tamanho.
Pelo salão improvisado na sacada,
concluo que é uma cabeleireira, mas não uma profissional. Deve gostar do
ofício. Deve ter aprendido a cortar de curiosa, fez um curso aqui, outro acolá;
agora partiu para a prática. Deve fazer de cobaia a parentada; deve cortar da
mãe, dos filhos, das tias.
Era assim a minha mãe: cortava o meu,
do meu pai, da minha avó, dos meus tios; de vez em quando, de um ou outro
amigo. O salão era no quintal. Professora, ela não era cabeleireira
profissional, mas gostava e tinha certas habilidades, o dom que todo mundo
fala. Cortar cabelos parecia fácil; ela tinha o dom.
Algumas pessoas nascem com um talento
para certas profissões. Tive um amigo músico que nunca tinha
frequentado um curso de violão. O que sabia, aprendera sozinho, de ouvido, numa
época sem internet. E tocava muito bem. Aliás, não só tocava muito bem, como
era o melhor.
Minha mãe tinha o talento para cortar
cabelos. A vizinha também deve ter. E deve gostar, porque se não gostar não
adianta. Imagino que ainda esteja descobrindo o mundo dos cabelos, esteja
experimentando, tateando os segredos dos cortes, das melhores tesouras, das
maquininhas, dos melhores produtos para usar. E fazendo de cobaia os seus. De
vez em quando dá uma tesourada: um pé maior que o outro, um corte mais
profundo, um buraco na cabeça de alguém, nada que não consiga corrigir,
disfarçar, ainda que usando lápis de sobrancelhas.
São vizinhos novos. Outro dia reparei a
mudança, a arrumação das coisas, o movimento diferente no apartamento da
frente. Era um sábado quente. Havia uma criançada brincando, pulando na cama,
acendendo e apagando a luz. Uma hora a família foi pra sacada olhar o fim da tarde,
ficaram emocionados com a paisagem nova, com a luz do dia se apagando. Daqui a
pouco se acostumam. Na vida é assim: tudo é efêmero, principalmente o belo.
O corte de cabelo acabou, agora a
vizinha toma cerveja. E fuma. Pois me deu vontade de fazer o mesmo. Pego uma
cerveja na geladeira. Não fumo, mas resolvo experimentar um cubano que tenho
aqui, presente do Toninho que voltou recentemente de Havana. Fazemos companhia
um pro outro. Ela lá. Eu aqui.
Ilustração: aqui
Comentários
Me fez lembrar do belo filme "O marido da cabeleireira". Você já assistiu?