MEMÓRIAS NÃO REVELADAS VÃO AO BORDEL III >> Albir José Inácio da Silva

(Continuação)

Dasdô olhou para Nicolau e viu que ele viajava. Nem a conversa tava rendendo. Não gostava disso, era honesta, queria dizer que ele estava jogando dinheiro fora, mas tinha medo que ele se aborrecesse de novo.

De fato, Nicolau penetrara no escuro de seus próprios pesadelos. Enquanto eram noturnos, ele os aguentou bem. Dormia mal, acordava pior, olhos inchados, adoecia, mas aguentou. Aí começou a vê-los acordado. Estavam em todos os lugares, às vezes com os mesmos rostos retorcidos daquela época. Podia ouvir-lhes a voz, os gemidos, as súplicas. Outras vezes enxergava-os já de cabelos brancos, andando pelas ruas com filhos e netos, como se um programa de computador os tivesse envelhecido. Ele fugia, entrava numa loja, mas lá estavam eles. Pareciam reconhecê-lo. Sorriam como se tivessem vencido, como se fosse ele o torturado. Como se soubessem do seu abismo. Não o olhavam com ódio, não o condenavam. Pareciam se divertir. Pareciam tranqüilos, como Dasdô ali em frente. Como o olhar de Dasdô. Ás vezes pensava que já conhecia aquele olhar.

Percebeu que Dasdô também cismava sozinha, mas era melhor assim, calada ela funcionava melhor. O que é que uma putinha de quinta poderia saber sobre problemas tão complexos? Voltou às suas dores.

Seus pesadelos não eram remorsos. Se fez alguma coisa errada, se exagerou, se cometeu alguma injustiça foi por que é humano. Humanos erram. A vida não é justa. A justiça não é justa. A história não é justa porque escolhe seus bodes expiatórios para fingir que faz o que não faz, que compensa o dano, para parecer que tudo se equilibra. Não é nenhum monstro só porque eventualmente ressuscitou alguém para obter mais informações. Informações às vezes imprescindíveis para a recuperação da ordem, da decência e da moral. Isso é cumprimento de dever, e cumprimento de dever não pode ser crime.

Reparou que Dasdô ficou deprimida depois que falou de solidão, pesadelos e pecados. Ela não tinha culpa dos seus problemas, e ele se esforçou:


- Não reclame não, Maria das Dores, vocês estão cada vez mais valorizadas. Formam associações, têm representantes nos parlamentos, reivindicam direitos trabalhistas. Algumas trabalham em lugares luxuosos com cachês cada vez maiores.

Isso era o que mais doía nele. Até as prostitutas tinham a sua dignidade. E eles? Desempregados, humilhados, perseguidos. A humanidade resolveu que não são mais necessários, são uma mancha na sua história. Esquecem-se dos serviços prestados durante a santa inquisição em defesa da fé, da justiça e da verdade. Esquecem-se de quem os defendeu, neste país e na América Latina, dos comunistas que ameaçavam a pátria, a família, a religião e a livre-propriedade. Esquecem-se de que, ainda hoje, esses trabalhos são necessários para salvar reféns e desmontar quadrilhas. Trabalho que tem de ser feito clandestinamente em salas à prova de som nas delegacias. Mesmo os governantes que reconhecem a importância dessa atuação, quando há denúncias, negam, dizem que vão punir e que não admitem tais práticas. Hipocrisia é a palavra de ordem do momento!

Dasdô voltou a segurar sua mão. Dessa vez ele não puxou. Olhou-a nos olhos e só não conseguiu sorrir. Tirou do bolso umas notas amassadas que colocou sobre a mesa. Ambos miseráveis. Levantou-se. Ela ainda lhe segurava os dedos.

- Não some não, Seu Nicolau, que eu vou ficar aqui tentando me lembrar de onde eu conheço o senhor.

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